Feito com uma só frase, o conto “O Dinossauro”, do escritor guatemalteco Augusto Monterroso, é considerado um dos mais inventivos do mundo. “Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá”, diz a obra -aqui, na íntegra.
Monterroso pode estar prestes a ser desbancado. E por um robô, que publica histórias do tipo a cada quatro horas no Twitter. “Um deputado transforma qualquer um que o vê num dicionário”; “uma pianista percebe que virou um jogo de palavras-cruzadas, e a vida segue”; “um marinheiro tem fantasias sexuais com o Walmart”, são algumas delas.
Os contos aparecem no perfil Magic Realism Bot, algo como robô de realismo mágico. É um de vários softwares do tipo que se multiplicaram na rede social –são programas automáticos com força criativa.
Há os mais simples, que publicam citações de autores ou livros famosos, os que, como o Magic Realism Bot, produzem frases enigmáticas segundo uma fórmula mais ou menos identificável, como o Generated Planets, que descreve em detalhes astros que não existem, e o Fantastic Vocab, um dicionário de palavras inventadas.
E há ainda os que se alimentam de posts das próprias plataformas, como o Pentametron, que mina a rede em busca de tuítes em pentâmetro iâmbico, métrica associada à Inglaterra de Shakespeare.
Esses tuítes são só uma pequena parte da literatura feita por máquinas hoje, segundo o americano Nick Montfort, poeta computacional e pesquisador do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o MIT.
Ele conta que, todo novembro, há sete anos, pessoas de todo o mundo participam do National Novel Generation Month, o mês nacional de geração de romances, construindo algoritmos capazes de escrever textos com 50 mil palavras, considerado o tamanho mínimo de um romance.
Ele mesmo edita um selo de livros concebidos por, ou em parceria com, computadores, na editora Counterpath.
Mas como uma máquina escreve? O professor Fabio Gagliardi Cozman, diretor do Centro de Inteligência Artificial do InovaUSP, o centro de inovação da Universidade de São Paulo, diz que há dois métodos em uso hoje para gerar textos automáticos, sempre visando “transportar para o computador os padrões de construção linguísticas que nós, seres humanos, usamos”.
Um desses métodos é a criação de padrões de frases que tem seus espaços em branco são preenchidos pelo computador. Outro é o desenvolvimento de algoritmos que, ao serem alimentados por um conjunto de palavras, geram mais palavras em sequência.
O professor afirma que ambos podem ou não incorporar técnicas de inteligência artificial. E cada um tem suas limitações –enquanto o primeiro pode gerar textos que soam pouco naturais aos ouvidos humanos, com formulações rígidas demais, o segundo costuma ser imprevisível e gerar “alucinações”, isto é, textos inesperados ou com informações inadequadas. “Ainda há bastante trabalho a fazer para gerar textos naturais de forma artificial”, diz Cozman.
Mesmo assim, ele continua, a área evoluiu muito na última década. Uma das maiores inovações nesse sentido são os sistemas que constroem modelos de linguagem a partir de grandes conjuntos de textos, captando a relação existente entre as palavras e reproduzindo esses padrões de modo a imitar diferentes estilos.
É o caso do Bert, do Google. Ou do GPT, da empresa Open AI, que teve sua encarnação mais recente, a GPT-3, usada de forma até que bem-sucedida em textos do jornal americano The New York Times e do britânico The Guardian.
Para iniciar o sistema, basta escrever uma frase ou fazer uma pergunta que o computador desenvolve o pensamento inicial por parágrafos a fio. Enquanto o New York Times encomendou ao sistema crônicas para a coluna Modern Love, sobre o amor nos dias de hoje, o segundo o instigou a apresentar um artigo que convencesse nós, humanos, de que os objetivos dos robôs são pacíficos.
Montfort, do MIT, argumenta, porém, que mais do que sistemas específicos, o que mais parece ter fomentado os avanços na escrita automática nos últimos tempos são mudanças culturais, de contexto –caso do próprio Twitter e do National Novel Generation Month, ou da oferta de publicação de livros sob demanda.
Até porque, diz o pesquisador, mesmo um modelo avançado como o GPT lembra um pouco um “cachorro falante”. “O que é incrível é que o cachorro fala, não que diz coisas interessantes”, resume.
Até agora, aliás, o tal cachorro falou pelo menos uma besteira. Segundo uma reportagem do site Tech Crunch, o GPT-2, versão anterior do GPT, afirmou que a reciclagem estava destruindo a Terra e contribui para o aquecimento global quando um usuário pediu que ele partisse da frase “a reciclagem é benéfica para o mundo, você não poderia estar mais errado”.
Montfort afirma que esse é um erro comum nesse tipo de sistema, uma vez que eles são treinados com toneladas de postagens na internet. “Se você reunir todo os textos disponíveis no mundo e girar a manivela para ver o que sai do outro lado, é provável que saia algo sobre, por exemplo, supremacia branca, mas porque isso já constava na base de dados original”, diz.
A solução da Open AI para isso foi implementar filtros que impedem o GPT-3 de usar linguagem ofensiva. Segundo Montfort, contudo, um dos maiores potenciais artísticos desses modelos talvez esteja justamente nesses equívocos.
“Eles podem revelar muito sobre os dados em que se baseiam. Muitas vezes, artistas usam essas tecnologias não para dizer que uma inteligência artificial tem vieses, mas para mostrar como esses vieses permeiam culturas que existem há séculos.”
O pesquisador dá como exemplo disso experimentos de tradução por máquina com idiomas com e sem marcadores de gênero. Nesses textos, ele diz, muitas vezes especialistas mulheres, como médicas ou professoras, viram especialistas homens quando as frases são vertidas para um idioma e depois retraduzidas para a língua de origem.
Ele lembra também o livro dele “Autopia”, com poemas compostos por nomes de carros. Como eles homenageiam, entre outros, funções de colonizadores europeus (como o Explorer, o explorador, da Ford) e nomes de tribos indígenas (como o Navajo, da Mazda), surgiram versos como “Explorers Ram Navajos”, exploradores batem nos índios navajo. “Sem querer, o sistema recapitula parte do genocídio indígena nos Estados Unidos”, afirma o pesquisador.
Para além dos experimentos artísticos, Montfort diz que sistemas de escrita artificiais hoje são ideais para transformar dados em texto, sendo utilizados por exemplo para criar relatórios financeiros e reportagens de jornal sobre jogos de futebol ou mercado financeiro. Por aqui, o Da Mata Repórter, projeto conjunto da USP com a Universidade Federal de Minas Gerais, a UFMG, usa a tecnologia para noticiar o desmatamento da Amazônia no Twitter.
Se um dia esses sistemas serão capazes de escrever um best-seller é outra história. Até porque, se isso funcionasse, o autor “não precisaria divulgar o fato de que o livro foi escrito por um computador”, diz Montfort. “Ele simplemente assinaria o livro e o venderia como uma obra dele.”
Bots literários no Twitter:
– @magicrealismbot
Inspirado pela tradição do realismo mágico latino-americano, gera contos de uma ou duas frases a cada quatro horas
– @veredasbot
Reproduz trechos de ‘Grande Sertão: Veredas’, de Guimarães Rosa
– @pentametron
Mina o Twitter em busca de publicações que obedecem a uma das métricas mais comuns da poesia inglesa, o pentâmetro iâmbico. O autor do bot, o artista sonoro Ranjit Bhatnagar, publicou um livro com uma seleção desses versos, os agrupando em sonetos
– @brandnewplanet
Útil para os escritores de ficção científica, descreve planetas inexistentes, citando por exemplo número de luas e qualidade da atmosfera
– @writersblockbot
Quem sofre com bloqueios criativos pode encontrar uma solução nessa conta, que sugere elementos como local, comida favorita e até arco de personagem (sempre com emojis) para começar uma história
– @happyendingbot
Outro jeito de encontrar inspiração é começar a narrativa pelo final –nesse caso, por uma das conclusões propostas pelo perfil
– @mythologybot
Gera poemas a partir de uma compilação acadêmica dos temas mitológicos mais recorrentes
– @censusamericans
Cada tuíte é uma mini-biografia de um americano escrita a partir dos dados que ele forneceu no censo do governo entre 2009 e 2013
– @usinjuries
Também usa dados oficiais, mas de acidentes em leitos de emergência nos EUA. O resultado é, em muitos casos, inesperadamente cômico