Dois casebres destruídos pelo fogo. Moradores calados pelo medo. Tiros disparados à vontade. A invasão Terra Santa, no Tatuquara, está em pé de guerra.
A frase ?Beco Loco?, pichada com spray no muro de uma casa na esquina entre um beco sem saída e a conhecida Rua da Paz, indica o local onde aconteceu o atentado.
Na noite de terça-feira, por volta das 21h, duas casas de madeira, próximas uma da outra, foram incendiadas criminosamente. Das residências sobraram apenas as estruturas do chão.
Os bandidos não se contentaram em provocar dois incêndios e ainda dispararam vários tiros. A marca de uma das balas ficou no para brisa de um Fusca, estacionado na frente das moradias.
?Ninguém fala nada. Mas pelo que apuramos as duas famílias foram expulsas das casas e depois os bandidos atearam fogo. Alguns vizinhos teriam tentado apagar as chamas, mas os criminosos começaram a atirar, para espantá-los. Por sorte ninguém se feriu?, contou o tenente Ribeiro, comandante da 2.º Companhia do 13.º Batalhão da PM.
Pavor
Foto: Átila Alberti |
Sobrou tiro até pro Fusquinha estacionado no beco. |
Na tarde de ontem a equipe do Paraná-Online voltou ao local acompanhada por policiais civis. Poucas pessoas passavam pelo beco.
O que se via eram rostos assustados, escondidos atrás das cortinas dos barracos. Alguns ?olheiros? observavam a equipe de reportagem e a polícia. A única pessoa que se aproximou foi um morador alcoolizado.
Ele pedia segurança, mas não ficou por muito tempo ali. Dois filhos chegaram aflitos e o levaram. Eles sabiam que o pai era observado e corria risco de ser apontado como ?alcagueta?.
De acordo com o superintende do 13.º Distrito Policial, Marcos Bialli, os autores do incêndio teriam vingado a morte de Amarildo Brito, o ?Mãozinha?, 27 anos, executado no domingo à tarde. Os crimes, mais uma vez, estão diretamente ligados ao tráfico de drogas.
Radiografia da violência
Marcelo Vellinho
Foto: Átila Alberti |
A inscrição no muro alerta pro perigo existente no local. |
A 15 quilômetros do centro de Curitiba, a Sudoeste, existe um lugar onde a pobreza e o abandono provocam um grave problema social e causam preocupação constante a seus moradores. É o Tatuquara.
Conhecido como um dos bairros mais violentos da cidade, está também entre os mais carentes de nossa capital.
As deficitárias e ineficientes redes de educação, transporte e saúde, aliadas à falta de perspectiva da população, inserem o Tatuquara no topo de uma desagradável lista: a da criminalidade.
Números alarmantes mostram que, somente neste ano, pelo menos 29 vidas foram ceifadas em batalhas sangrentas travadas em becos escuros e estreitas ruelas de saibro. Em média, mais de uma pessoa é assassinada por semana.
Entre as diversas vilas, moradias e invasões que compõem o lugar, há um território que contribui consideravelmente para esta cruel estatística. Ironicamente, é conhecido como Terra Santa e tem ruas batizadas de ?da Paz? e ?dos Amigos?.
Porém, a pequena vila, fundada em 1999 e composta por mais de duas mil famílias que se amontoam em casebres de madeira, nada tem de abençoado, pacífico ou amigável. Pelo contrário, é freqüentemente palco de tragédias, como as chacinas ocorridas em 19 de março e 26 de maio, em que, ao todo, quatro pessoas foram assassinadas a tiros e outras cinco ficaram feridas.
Somente este ano, já são pelo menos 13 homicídios na vila, média superior a dois por mês, em uma área de 0,5 quilômetro quadrado. Embora pareça um terrível cenário de guerra, tudo isso acontece em meio a uma população miserável, que sofre com o rápido crescimento populacional e luta para sobreviver basicamente da coleta de material reciclável e do trabalho na Ceasa (Central de Abastecimento).
Além da Terra Santa, outras vilas do Tatuquara se tornaram conhecidas pela violência, como Santa Rita, Rio Bonito, Bela Vista, Pompéia, Palmeiras, Monteiro Lobato e Jardim da Ordem.
Em menor intensidade, estas regiões sofrem dos mesmos problemas da Terra Santa. ?São questões sociais, como a falta de educação e de oportunidades, que levam os jovens para o mundo do crime?, resume Marcos Bialli, superintendente do 13.º Distrito Policial, que atua no bairro.
?É uma região de intenso tráfico de drogas, com problemas de urbanização, saneamento básico e iluminação?, completa o tenente Ribeiro, comandante da 3.ª Companhia do 13.º Batalhão da Polícia Militar, responsável pelo policiamento do Tatuquara. Para agravar o quadro, as duas polícias, Civil e Militar, sofrem com a escassez de pessoal e de estrutura no combate à violência.
Vinte e nove pessoas executadas nas ruas do Tatuquara, só este ano
Foto: Daniel Deverecki |
?Mãozinha? foi vítima de homicídio no último domingo. Seus amigos vingaram o crime ateando fogo em dois barracos. |
Além da sensação de insegurança que aflige a população do Tatuquara e principalmente da invasão Terra Santa, números e estatísticas mostram que a criminalidade no bairro está bem acima da média.
De acordo com projeção feita pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC), o Tatuquara conta, hoje, com uma população estimada em cerca de 50 mil habitantes, equivalente a aproximadamente 2,7% da população curitibana.
No entanto, o bairro foi responsável por quase 8% dos homicídios registrados em Curitiba, em 2007. Embora a Secretaria de Segurança (Sesp) não divulgue os números referentes a 2008, levantamento feito pela reportagem apurou que, somente no primeiro semestre, pelo menos 29 pessoas já foram mortas no bairro. Em números absolutos, os assassinatos no Tatuquara se assemelham a bairros muito mais populosos, como Sitio Cercado, Cajuru e Uberaba, também considerados violentos.
O tenente Ribeiro admite que a polícia tem dificuldade para conter a criminalidade no Tatuquara, mas informa que um trabalho inovador tem sido realizado.
?Estamos identificando os criminosos, trocando informações com a Polícia Civil e fazendo acompanhamento de ocorrências com os solicitantes?, contou o comandante, que também atua no Umbará, Campo do Santana e Caximba.
De acordo com Ribeiro, o efetivo para os quatro bairros é de 61 policiais militares. Para os 50 mil habitantes do Tatuquara, existem uma viatura policial e duas motocicletas.
O policiamento é reforçado com a presença de viaturas da Rondas Ostensivas de Natureza Especial (Rone) que fazem patrulhamento constante no bairro, principalmente nas invasões.
A Polícia Civil também sofre com a falta de estrutura. De acordo com o superintendente Bialli, do 13.º DP, existe a necessidade de ampliação do número de investigadores. Porém, o policial ressaltou que são poucos os casos de homicídios investigados pelo distrito policial.
?A grande maioria dos assassinatos é de autoria desconhecida e vai para a Delegacia de Homicídios?, lembrou. Por causa disso, as investigações da distrital se concentram no combate ao tráfico de drogas.
Tráfico dá as ordens de dia e de noite
Diante de tantos problemas, moradores das invasões – principalmente os jovens – se vêem obrigados a enfrentar um dilema, que muitas vezes leva a um caminho sem volta. Enquanto muitos tentam ganhar a vida honestamente, com trabalho duro e normalmente mal remunerado, outros, por diversas razões, acabam se afundando no tráfico de drogas.
De acordo com especialistas, não é somente a falta de emprego e oportunidades que insere o jovem nesse mundo. A desestruturação familiar, as poucas ou nulas opções de lazer e a curiosidade também são alguns ingredientes que colaboram com esse descaminho.
Outra questão fundamental é a imagem que muitos adolescentes têm dos principais traficantes, com suas roupas modernas e carros novos, rodeado de mulheres e armas. Além da oportunidade de ganhar dinheiro, o tráfico pode trazer fama e poder na região.
Os moradores têm medo dos traficantes, porque eles controlam tudo. Ninguém sobrevive ou instala um comércio na vila se não colaborar com eles. É o famoso ditado ?se não pode vencê-los, junte-se a eles?, ressaltou um morador.
O resultado dessa ?migração? para o tráfico é o amontoado de jovens em bocas de fumo e a enorme quantidade de homicídios. ?Quase sempre, a violência acontece quando há envolvimento com as drogas. Normalmente são problemas entre pessoas que estão nessa vida?, comenta Rosalina, da Umotesa.
Além dos assassinatos, roubos e furtos são comuns entre usuários de drogas que não têm condições financeiras de sustentar o vício. ?Aí entra a ?proteção? do traficante. Se um usuário rouba um comércio da vila, ele fica marcado?, concluiu o morador.
Falta tudo, desde ônibus até creche
Foto: Walter Alves |
?Vanjo?, um dos primeiros, quer creche para as crianças. |
É unânime entre as autoridades policiais que a criminalidade está diretamente ligada a diversas questões sociais.
Falta de emprego e perspectiva para a população, escassez de escolas e creches, condições precárias de saneamento básico, transporte e saúde são problemas comuns no Tatuquara, principalmente nas chamadas ?invasões?, como a Terra Santa.
São áreas ocupadas normalmente por pessoas marginalizadas, habitantes de outras favelas, moradores de rua e de municípios vizinhos ou do interior do Estado, que sofrem com a exclusão social.
Acabam migrando e fomentam grande crescimento populacional. É o caso do comerciante ?Vanjo?, representante da comunidade da Terra Santa. ?Cheguei logo no primeiro ano da invasão. Morava em Toledo e, sem dinheiro, vim para cá em busca de trabalho?, resumiu.
Para se ter uma idéia, quando a Terra Santa foi fundada, em 1999, era composta por apenas oito famílias. Hoje, são mais de duas mil famílias e quase cinco mil moradores. Para toda essa gente, segundo ?Vanjo?, existe apenas uma creche municipal com cerca de 50 vagas. Escolas somente nas vilas vizinhas e, mesmo assim, não são suficientes.
?Não há vagas para todos. As crianças precisam ir para outros colégios na redondeza, mas têm que ir a pé, porque não tem ônibus?, reclama Rosalina Silva de Souza de Ciqueira, presidente da União de Moradores da Terra Santa (Umotesa).
A única escola estadual da vila está desativada há quatro anos. Ademir José Mizael, que trabalha na Ceasa, relata que dos oito filhos que tem, somente metade conseguiu vaga em escolas e creches. ?Pago os vizinhos para cuidarem dos quatro filhos mais novos enquanto trabalho?, contou.
As ruas da vila, quase todas de saibro, se misturam a esgotos a céu aberto e casebres de madeiras, muitos deles à beira do rio e com risco de desabamento. ?Muitas famílias, que vivem em locais mais críticos, estão sendo relocadas para outra região (Moradias Laguna), onde 139 casas foram construídas?, ressaltou Rosalina.