Rua Betonex, Jardim Holandês, Piraquara. Os nomes lembram o florido e tranqüilo país da Europa, uma grande empresa brasileira e a cidade paranaense ao pé da Serra do Mar, conhecida como “Berço das Águas”. A paz e o romantismo ficam só nos títulos. A realidade daquele pedaço de terra é banhada em sangue, repleta de crimes e rodeada pela lama e o lixo que se espalham pelos trechos sem calçamento.
Os dados da Polícia Civil de Piraquara falam por si. Cerca de 80% dos assassinatos ocorridos nos últimos anos na cidade tiveram como palco a Betonex. A estimativa é do superintendente Edson Costa, da delegacia local. Nos últimos dois meses, aconteceram oito homicídios na “Rua do Sangue”. Destes, quatro ocorreram no intervalo de exatos quatro dias, na semana passada. Fora tiroteios, brigas e assaltos. “Tem uma gangue agindo na região. São assaltantes e viciados, que matam por qualquer coisa”, diz o policial.
Aparências
Estranhamente, alguns moradores dizem que o bairro é “tranqüilo”. Trata-se de uma paz aparente, equilibrada em leis próprias ? típicas de toda região que abriga criminosos. Eles são minoria, mas dominam, botando medo na vizinhança.
Os bandidos matam quem os desafia. Assim funciona e se perpetua a velha “lei do silêncio”: todo mundo vê, todo mundo sabe quem foi. Denunciar é outra conversa – é melhor seguir em frente e tocar a vida do jeito que dá.
“As pessoas têm receio de registar queixa. No local do crime, ninguém fala nada. Depois, telefonam anonimamente contando as histórias”, relata Costa. A situação é confirmada pelo soldado Vítor, postado no módulo da PM da Betonex. “A maioria das pessoas não vai à delegacia, não procura a polícia nem quer apontar os autores dos crimes”, observa.
Bares
A Rua Betonex ocupa 2 km entre as avenidas João Leopoldo Jacomel (Rodovia do Encanamento) e Pastor Adolfo Weidmann. Nesse trecho estão instalados 24 bares visíveis – fora os “mocados”, que nem placa têm. Não falta bebida nem conforto espiritual: a rua abriga oito igrejas evangélicas, além de seis mercados, residências, farmácias, cabeleireiros, lojinhas de utilidades, escola e módulo da PM.
Os bares, lanchonetes e botecos são um capítulo à parte. Muitos ficam fechados durante o dia e não têm placa na porta.
Confusão
A Betonex é a principal via da ocupação irregular batizada como Planta São Mateus. O Jardim Holandês teve seu nome informalmente anexado à “Rua do Sangue” por uma dessas confusões que se perpetuam no boca-a-boca. “Falam que aqui é o Holandês porque o ônibus com esse nome entra na rua, mas não é”, observa Vilmar Rodrigues, presidente da Associação dos Moradores e Amigos da Planta São Mateus.
A ocupação começou em 1993. Desde então, tudo que a população conseguiu foi água encanada. “A Prefeitura promete regularizar tudo pra logo”, diz Vilmar.
Não só principal, a Betonex é praticamente a única rua de verdade na Planta São Mateus. Dela, saem pequenas vielas onde mal passa um carro. São ruas que não levam a lugar nenhum.
Verdadeiro
O legítimo Jardim Holandês fica depois da Rua Pastor Adolfo Weidmann. Naquele ponto, a Betonex retoma seu nome original ? Rua Roterdã, uma cidade holandesa. Na área da ocupação, a via ganhou o nome da empresa fabricante de concreto, que mantinha escritório naquela região na década de 70.
O Holandês é bem ajeitado e seus moradores não gostam nem um pouco da confusão entre nomes e territórios. “Aqui é tudo regularizado. Para o lado de lá é invasão. É um tal de bandido matando bandido”, comenta seu Valdir, enquanto joga sua sinuquinha no bar, bem na esquina que divide os bairros.
Nove vítimas em 2002
Fabiano
? Bar do Polaco, Rua Betonex, madrugada de domingo, 31 de março de 2002. Fabiano Gonçalves da Silva, de 16 anos, estava bebendo com amigos. Outro garoto, que teria apenas 15 anos, entrou no boteco, “armado” com uma lata de thinner, uma garrafa de álcool e isqueiro. O assassino despejou os líquidos e ateou fogo em Fabiano, que morreu cinco dias depois, no hospital. A polícia apurou que o autor do crime já tinha sido detido anteriormente por furtos. Por ser menor de idade, não ficou preso.Cílio e Ticão ? Madrugada de 7 de junho de 2002, sexta-feira. Cílio Inácio Peixoto, de 39 anos, e um amigo conhecido como Ticão tombam mortos na Betonex. Os corpos estão a menos de cinqüenta metros um do outro. Tudo que a polícia conseguiu apurar no local é que moradores ouviram uma saraivada de tiros e viram dois rapazes correndo. Cílio era criminoso, suspeito de assaltos e homicídio. Até hoje, ninguém identificou o segundo homem.
Carlão ? Manhã de sábado, 15 de junho de 2002. O corpo de Carlos Eduardo Ramos Dias, o Carlão, de 25 anos, é encontrado em uma valeta na Betonex. A visão é horripilante: toda a pele do rosto e o couro cabeludo do rapaz foram arrancados. O crânio e a arcada dentária ficaram à mostra, envolvidos na massa de sangue seco, enquanto o corpo submergiu na lama. Carlão, servente de pedreiro que fazia bicos na região, tinha estado em um bar, com a irmã, na noite anterior ? ali mesmo, na “Rua do Sangue”. Tomaram alguns goles juntos e a moça foi para casa antes da meia-noite. Só foi rever o irmão morto. É tudo que a polícia consegue descobrir no local.
Valmir ? Segunda-feira, 1.º de julho de 2002. Às 4h15 , uma pessoa chama a PM. Havia encontrado um corpo na Rua Betonex. A história se repete: um cadáver, com o rosto desfigurado, dentro de uma valeta. Desta vez é Valmir Oliveira dos Santos, de 33 anos. Foi assassinado brutalmente, a pauladas. Ninguém viu nem ouviu nada.
Marcos e Luiz ? Madrugada de quarta-feira, 31 de agosto de 2001. Passava pouco da 1h quando a PM foi chamada. Um morador do bairro avisou que tinha “uma pessoa estirada” na Betonex. Os PM?s encontram o corpo de Marcos Ferreira de Carvalho, de 20 anos, rodeado pelas pedras usadas para matá-lo. Os policiais começavam a fazer investigações quando foram avisados de que havia mais um cadáver perto dali. A menos de 100 metros, dentro de uma valeta, jazia o corpo de Luiz Aurélio Cavalheiro, 19. Neste, em vez de pedras, os assassinos usaram pedaços de pau.
Gordo ? Não se passaram 48 horas para que a polícia voltasse à “Rua do Sangue”. Na quinta-feira à noite, Ariel Lourenço, o Gordo, caiu morto dentro da “Toca do Grilo”. Levou três tiros. Vizinhos disseram que ele era uma pessoa tranqüila. Comentaram que, pouco antes de morrer, tinha bebido em um bar próximo e convidado um amigo para comer churrasco em uma “boca-livre” ali perto, promovida por um político. Era separado, vivia sozinho e consta que “fazia uns bicos” para sobreviver
Marcos ? Novamente o intervalo entre um assassinato e outro foi curto: dois dias. Na madrugada de sábado, foi a vez de Marcos André dos Santos, de 24 anos, ser atacado a golpes de facão e cortadeira. Dessa vez, o crime não aconteceu na Betonex, mas no mesmo bairro. Mais uma vez a gangue deixou sua marca registrada: estraçalharam o rosto do rapaz e, sádicos, tocaram fogo na casa dele. Saíram gritando: “Vai morrer mais gente” e ainda assaltaram mais duas pessoas, impunemente. Moradores comentaram que até a PM anda com medo de entrar no bairro à noite ? o assassinato foi à 1h30 mas os policiais só foram ao local depois das 6h da manhã. (BM)
Polícia caça gangue do terror
A polícia de Piraquara está no encalço da gangue que aterroriza a região da Planta São Mateus. De acordo com o superintendente Costa, o bando seria responsável pela maioria das mortes ocorridas nos últimos dois meses na Rua Betonex. O líder do bando está preso. Ele é Nilson de Avelar, o Batata, de 22 anos, irmão de Rodrigo Avelar, o Dídio, também criminoso. Dídio age na região da Vila das Torres, em Curitiba, e é foragido da cadeia de Pinhais.
Batata está no xadrez da delegacia de Piraquara, indiciado por homicídio. Foi reconhecido por parentes de Fábio Isaías Borges, um rapaz de 17 anos assassinado em março deste ano.
“Zoando”
Fábio estava em casa quando a mãe pediu que ele fosse buscar o irmão de 12 anos em uma festa de aniversário ali perto. Batata e os comparsas queriam invadir a casa para “zoar” no aniversário. Fábio, um rapaz alto e forte, cometeu o erro fatal de se intrometer com o bando, tentando acalmar Batata.
Assustados com a confusão, os donos da festa fecharam a casa. O que aconteceu a seguir foi uma cena de terror. Ninguém teve coragem de intervir. Arrastado para fora da casa, Fábio foi espancado. Um pedaço de garrafa quebrada foi enfiado no pescoço dele. Depois que a gangue fugiu, o rapaz foi socorrido. Estava agonizando. Morreu no hospital, três dias depois.
O superintendente Costa conta que a polícia já conseguiu colocar as mãos em alguns integrantes do bando. Há três semanas, depois de uma batida policial na região da Rua Betonex, eles foram detidos. Mas a juíza substituta de Piraquara não considerou as evidências suficientes para mantê-los presos e todos tiveram que ser liberados.
Doidões
“Quando eles foram presos, muita gente ligou para a delegacia agradecendo”, lembra o policial. Ele acrescenta que os comparsas de Batata não são traficantes, e sim usuários de drogas, que também roubam e furtam. Nenhum deles tem profissão fixa. “Ficam doidões e fazem essas barbaridades, de sair matando com pau, pedra, facão”, observa Costa.
O superintendente diz que o assassinato de Ariel Lourenço, na quinta-feira passada, pode ser um dos poucos que não foi praticado pela gangue. “Estamos investigando, mas talvez a bronca seja outra. Algumas pessoas disseram que viram dois carros perseguindo a vítima. E a turma do Batata não costuma usar revólver”, concluiu.