Ser aprovado no exame psicológico é exigência para se tornar um policial militar. Muitos dos que passam no concurso são considerados aptos e saudáveis, mas a rotina conturbada da profissão, com a vivência da morte e as eventuais perseguições, pode desencadear transtornos mentais, como estresse e depressão. Pesquisas realizadas no mundo inteiro apontam que trabalhar com segurança é a profissão mais estressante de todas.
As sequelas podem refletir no comportamento profissional e pessoal do policial que vive com o dedo no gatilho. Se o problema não for tratado a tempo, o pior pode acontecer. No início de novembro, um soldado, de 28 anos, cometeu suicídio com a arma funcional no posto de trabalho. O PM entrou na corporação em 2010; estava lotado no 23.º Batalhão da Polícia Militar (BPM) e era atendente na Unidade Paraná Seguro (UPS) Caiuá, na CIC. Um conhecido dele, que preferiu não se identificar, revelou que ele ficou deprimido depois que começou a responder processo administrativo e ser perseguido por um superior. Mesmo assim, não foi afastado do serviço e tomara altas doses de antidepressivo. Um colega de farda revelou que o soldado cometeu suicídio no dia se seu aniversário, depois que a mulher e o filho de 5 anos foram visitá-lo no plantão na UPS. Quando a família saiu de lá, no início da tarde, ele surtou: pegou a arma e deu um tiro no peito na frente de quatro policiais. O PM foi encaminhado ao Hospital do Trabalhador, onde morreu. Colegas dele ficaram revoltados com a situação, reclamando da negligência da corporação. Afinal, assim como ele tirou a própria vida e deixou um grande trauma na família, poderia ter ferido outras pessoas.
Tensão
O Paraná Online conversou com policiais, que preferiram não se identificar. “Se fossem fazer exame psicológico, nem 10% passariam hoje”, disse um deles. Os PMs entrevistados confirmam perseguição interna e admitem que, o cenário é pior para quem trabalha nas UPS. Não raro, se veem sozinhos num bairro violento e precisam conviver com a presença de membros de facções criminosas, que muitas vezes estão mais aparelhados que os próprios policiais.
Para o coronel César Alberto de Souza, ex-coordenador das UPS no Paraná e membro da Associação de Defesa dos Direitos dos Policiais Militares Ativos, Inativos e Pensionistas do Paraná (Amai), a falta de logística, infraestrutura, carga horária excessiva e indefinida e até as críticas são ingredientes de uma bomba relógio. “Muitos policiais não sabem o que vão fazer amanhã. Outro absurdo é fazer segurança em eventos particulares enquanto que a segurança nesses casos deveria ser privada”, observa.
Segundo ele, a situação do 23.º BPM espelha a falta de planejamento. “O governador criou o batalhão, mas não ativou as vagas para economizar. Não existe a estrutura que deveria ter sido criada. Ele é ainda um anexo do 13.º Batalhão”, afirma o coronel, que colocou a Amai à disposição de quem se sentir prejudicado. “Não temos relato de situações desse tipo. Mas quem quiser pode entrar em contato com a associação que estamos prontos para defender”, orienta.
“Policial era indisciplinado”
A PM não informa o número de policiais que estão afastados para tratamento psiquiátrico, por conta do sigilo médico e questão de segurança, segundo informou a assessoria de imprensa da corporação.
Sobre o suicídio, o comando do 23.º BPM informou que o policial respondia a procedimento interno referente à conduta e à disciplina e foi afastado do serviço de rua, permanecendo na UPS. O soldado, segundo a PM, já havia apresentando desvio de comportamento: ele agrediu uma pessoa durante uma ocorrência policial e, em outra situação, chegou a atirar num pneu de carro.
Quando sintomas, aparecem, o protocolo indica que é preciso procurar ajuda. “Em nenhum momento a família dele pediu afastamento ou tratamento psicológico”, informou a corporação. O comandante do 23.º BPM, tenente-coronel Sergio Cordeiro de Souza, ainda garantiu que não havia perseguição e enfatizou que os PMs são avaliados periodicamente. “A polícia se preocupa com o estado de saúde da corporação. Os policiais que estavam no local e a família da vítima também estão recebendo acompanhamento psicológico”, informou.
Suicídio e drogas maior entre PMs
Transtornos mentais são a maior causa de absenteísmo e reforma antecipada entre policiais e bombeiros militares, segundo o coronel Alberto de Souza, da Associação de Defesa dos Direitos dos Policiais Militares Ativos, Inativos e Pensionistas do Paraná (Amai). No final da década passada, a Associação ajudou a patrocinar uma pesquisa que mapeou a saúde mental da corporação. O resultado mostrou dados alarmantes: o índice de suicídio, de estresse e de envolvimento com drogas é maior do que entre a população comum. “A pesquisa foi entregue ao comando geral. Com base nesses dados, ajudamos a construir o centro terapêutico da PM, o CeTe, que é um dos pioneiros no Brasil”, explicou. A verba vem de um fundo mantido com o dinheiro descontado dos policiais. “Desde que a saúde pública foi terceirizada, perdemos essa possibilidade de ter essa assistência psicológica. Com o fundo próprio tentamos compensar a falha do estado”, afirma o coronel.
Ajuda
PMs ouvidos pela reportagem se queixam da eficácia dos serviços e da falta de avaliação psicológica constante. “Não existe uma avaliação periódica. Você mesmo tem que ir procurar ajuda”, diz. A reclamação também se estende ao prazo dado a quem se envolve em confronto armado, que, para eles, é curto. “Nós ficamos afastados por uma semana apenas”, afirma.
Prevenção
Para o coronel, o cenário seria mais positivo se houvesse um investimento na prevenção. “Quem trabalha com a violência todos os dias vai acumulando o estresse e precisa se tratado. Mas o estado não se dá conta disso”, afirma.
Homicídios
Em 2012, o Paraná foi o Estado que mais registrou assassinatos de PMs em serviço no Brasil (21 mortes) e o segundo em mortes fora de serviço (23). Os dados são do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2013, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em conjunto com o Ministério da Justiça e que é uma radiografia aproximada do contexto atual da segurança pública, com base em informações dos 26 estados e distrito federal.
De acordo com a pesquisa, a taxa de mortalidade por homicídio de um policial no Brasil é três vezes superior à taxa de homicídio de um cidadão comum. No Paraná, esse número é dez vezes superior. Em São Paulo, cujo efetivo é cinco vezes maior que o do Paraná, 14 policiais morreram em serviço e 79 perderam a vida fora de serviço.
Pressão psicológica em serviço é alta
Marco André Lima |
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Confrontos armados e acidentes com viatura resultam em alto estresse. |
Em 2014, o soldado Calixto*, 37 anos, completa dez anos na PM. Nessa década, ele já se envolveu em vários confrontos, mas não faz questão de lembrar desses episódios. “A primeira vez é ruim. Você não consegue dormir. Independentemente de quem seja, tirar a vida de alguém afeta bastante. Eu não gosto de ficar lembrando, contando”, afirma. As situações de estresse, segundo ele, não se resumem à rotina do patrulhamento. A pressão psicológica é uma das válvulas para o descontrole emocional, como por exemplo, bater a viatura e ser ameaçado de ter as férias cassadas. Ainda assim, encarar um tiroteio é a pio,r experiência. “Precisamos ter cuidado para não ferir inocentes. Conheço vários colegas que estão afastados por depressão. Outro que foi excluído por usar droga. Você tem que ter uma cabeça boa. Se não acaba nisso”, conta o soldado, que trabalha em Colombo.
Normalmente são pessoas sadias que entram na corporação e que com a rotina passam a desencadear doenças. “Já fiquei 12h dirigindo a noite inteira. O desgaste físico é terrível”. O risco de morte também é onipresente. “Vivem me ameaçando e já chegaram a dar tiro na frente de casa. A sensação é que não existe mais lei para criminoso. Às vezes você pega um sujeito que é reincidente duas, três vezes. E muitas vezes ele mora no mesmo bairro. Quando chego em casa estou sempre atento”.
Ser policial sempre foi o sonho de Calixto, que hoje pensa diferente. “Se for por causa do salário, não vale a pena. Tem que gostar mesmo para encarar. Às vezes você veste a camisa mesmo sem apoio. Se eu tivesse outra profissão, sairia da PM. Somos alvo de crítica. Às vezes escutamos: não sei em quem confiar, na polícia ou no bandido. Mas uma árvore dá frutos bons e podres. Com a gente não é diferente. Mas é uma minoria. Tem gente que mesmo de folga arrisca a vida. Já presenciei situação de assalto quando estava à paisana e intervi. Quando você é policial, é 24 horas. Infelizmente, caminhamos numa linha tênue. Por isso temos que ter fé em Deus e nos apegar em alguma coisa, como na religião”.