Na intrincada história de traições, armações e violência, talvez a personagem que mais tenha sofrido seja Neiva Terezinha Gomes de Goes, 56 anos, dos quais há 32 está casada com Ademir Pires da Rocha, um dos acusados do crime. Quando soube que o marido havia sido preso, entrou em desespero e foi atrás dele, na delegacia de Almirante Tamandaré.
No começo não a deixaram vê-lo. Depois, em curtas conversas, ficou sabendo que ele estava sendo torturado para confessar o crime, e mais tarde foi informada que finalmente ele havia confessado. Hoje, no conforto de seu lar – o mesmo sobrado em que a ex-rival Orlinda diz que João Antônio foi morto – ela amarga as recordações daquela época. ?Nunca acreditei, em nenhum momento, que o Ademir tivesse matado João?, diz ela, salientando que sabia das ?puladas de cerca? do companheiro, que sofria com isso, mas que jamais o abandonou.
Neiva largou o emprego em uma escola, para poder visitar o marido na prisão. Vendeu a casa, o carro e emprestou dinheiro das cunhadas para poder pagar o advogado. Mas sua grande ajuda realmente foi dada no dia do julgamento. Chamada pela defesa, ela contou em detalhes que, na data em que Orlinda dizia ter ocorrido o crime, ela e Ademir estavam em Praia de Leste, na pequena casa que eles possuem, no Jardim Jacarandá. Ela lembrou também que em novembro era época de mutucas e que, por ser alérgica à picada do inseto, não queria descer para o litoral. Mas Ademir insistiu, pois pretendia cortar a grama do jardim e fazer alguns reparos na moradia.
Eles desceram no sábado pela manhã (João Antônio foi assassinado à noite, segundo Orlinda). Ademir também iria vender seu Fusca para juntar dinheiro para terminar a construção do sobrado e o casal aproveitou para fazer a última viagem com o veículo.
Realmente as mutucas estavam ?infernais?. Com o calor de fim de primavera, atacavam quem passasse pela frente. A filha de uma vizinha, um bebê recém-nascido, foi bastante picado e passou mal. Neiva ajudou a socorrer a garotinha, acompanhando-a ao hospital. A vizinha, Valderez Nogueira dos Santos, lembra até hoje daquele dia e confirma, com a receita médica e o registro do atendimento hospitalar, que Ademir e Neiva estavam na praia, naquela data.
O marido de Valderez, o construtor Joel dos Santos, e o pai dela, Valdir Miranda Nogueira, também recordam da presença do casal. Durante o dia Ademir cuidou do corte da grama do jardim e à noite foi tomar chimarrão com Joel. Na manhã seguinte esteve na casa de Valdir e até levou balas para as crianças, como costumava fazer. Estas três testemunhas foram ouvidas no Fórum de Matinhos e seus depoimentos anexados ao processo.
Como a polícia não havia conseguido reunir uma única prova material contra Ademir e, com o testemunho de pessoas que o viram no litoral, contrariando as acusações de Orlinda, os sete jurados que durante dois dias estiveram ouvindo os argumentos da defesa e da acusação, decidiram absolvê-lo. O advogado dele – Cláudio Dalledone Júnior – tinha tentado, inclusive, fazer com que Orlinda fosse julgada em separado, mas seu pedido não foi aceito pela Justiça. Como se tratava de um mesmo crime, seria impossível absolver um réu e condenar outro, no mesmo júri.
Desta forma, Orlinda se beneficiou da sentença e também foi absolvida do assassinato. No entanto, como havia escondido o cadáver do marido embaixo de sua casa, pegou dois anos e seis meses de condenação pela ocultação. Ela já havia cumprido esta pena antes mesmo de ser levada a júri e saiu em liberdade.
O julgamento, realizado no Tribunal do Júri de Curitiba, sob a presidência do juiz Fernando de Morais, terminou na noite de 4 de outubro de 2002, mas não encerrou o caso – que está arquivado no próprio tribunal -, já que o crime com requintes de crueldade ficou sem punição.
Defesa x acusação
![]() |
Dalledone Jr., o defensor. |
O promotor Paulo Sérgio de Lima, hoje atuando como chefe do Centro de Apoio ao Júri (que dá suporte técnico aos promotores que atuam nos júris em todo o Paraná), era promotor em Tamandaré em 2000, quando Orlinda e Ademir foram presos. Ele revela que acreditava na culpa dos dois, com base na certeza do delegado Rogério Haise, que havia investigado o caso. Porém, quando ambos foram absolvidos, ele preferiu não recorrer da sentença, respeitando a vontade dos jurados.
?Eu tinha a certeza processual quando acusei o Ademir e tinha elementos que foram propostos aos jurados.
Eles entenderam que o argumento da defesa era mais forte. Respeitei a decisão e me convenci de que não deveria recorrer?, explicou Lima.
![]() |
Paulo Sérgio de Lima, o promotor. |
Já o defensor – Cláudio Dalledone Júnior – garante que não mediu esforços para absolver Ademir, pois acreditava em sua inocência. De memória prodigiosa, até hoje ele aponta falhas nas investigações, perícias importantes que não foram feitas, falhas no processo e a confissão de Ademir mediante tortura. ?Minha convicção, dentro dos autos, é que quem matou João Antônio foi a mesma pessoa que o esquartejou e ocultou o cadáver?, diz. Pelo ?andar da carruagem? é possível perceber que a defesa suspeita de Orlinda. Mas como uma pessoa não pode ser levada a julgamento duas vezes pelo mesmo crime (se foi absolvida na primeira vez), muito provavelmente Orlinda, se culpada, jamais vai pagar pelo delito. Se inocente, jamais vai dizer quem é o verdadeiro culpado, talvez até para preservar a própria vida. (MC)
*Quem tiver qualquer informação que possa levar ao esclarecimento do assassinato do pintor João Antônio, pode entrar em contato com a polícia ou com a Tribuna pelo e-mail policial@tribunadoparana.com
