Educar e orientar o trânsito e motoristas ou apenas punir e arrecadar com multas. Qual é o verdadeiro papel que vem sendo desempenhado pelos órgãos municipais responsáveis pelo tratamento de questões relacionadas ao trânsito?
Denúncias apresentadas à Tribuna dão mostras da existência de um possível esquema, envolvendo “laranjas”, que permite que motoristas infratores não sejam punidos e não aconteça a inserção de pontos em suas carteiras de habilitação. Com o “esquema” as penalidades são enviadas aos “laranjas” – que são apresentados como condutores do veículo – e livram os verdadeiros culpados de qualquer responsabilidade. Entretanto, para forjar essa situação, indivíduos estão se apropriando de cópias de Carteira Nacional de Habilitação (CNH) e falsificando assinaturas de pessoas idôneas. A cumplicidade pelo sucesso da fraude pode ser atribuída à Urbs/Diretran, que é responsável pela fiscalização da documentação.
Muitas pessoas lesadas pelo golpe só ficam sabendo que serviram como “laranjas” após receberem uma notificação do Departamento de Trânsito (Detran) informando que estão com o direito de dirigir suspenso. Esse é o caso do denunciante que procurou a Tribuna para revelar o possível “esquema”.
Através de documentos e do próprio testemunho do reclamante, fica provado como é fácil burlar o atual sistema adotado pela Urbs/Diretran para a apresentação de condutores de veículos no caso de multas. Sem fiscalização adequada, a entidade de trânsito dá margem a aplicação do golpe, segundo o advogado lesado Paulo Cortellini.
Educar ou arrecadar
Com o documento de apresentação do motorista anulado (situação vivida três vezes pelo advogado) a responsabilidade sobre a infração de trânsito recairia novamente sobre o proprietário do veículo, conforme diz a legislação. Entretanto, isso provavelmente não ocorre porque no momento em que o “laranja” é apresentado como condutor do veículo a multa já é paga ou computada para ser paga no licenciamento. Nos casos de fraude, normalmente é apresentado o “laranja” como condutor e a multa já é quitada imediatamente. Assim, o órgão de trânsito arrecada e não há necessidade de comprovar se o condutor apresentado existe ou se é realmente culpado pela infração.
Partindo da denúncia apresentada pelo advogado, os órgãos disciplinadores de trânsito desprezam a primordial função para que foram criados (orientar e tornar motoristas mais conscientes em relação ao tráfego – mesmo que através da punição) e priorizam a arrecadação.
Vítima da fraude
O aviso que estava sendo vítima de um golpe veio pelo correio. A carta comunicava ao advogado Paulo Cortellini que ele não tinha mais permissão para dirigir. Uma consulta à internet confirmou a correspondência e pôs às claras um golpe que já atingiu muita gente e faz crer na existência de uma quadrilha especializada. Os pontos de quatro multas foram imputados ao advogado. As infrações de trânsito foram cometidas por condutores em veículos que Paulo nunca teve conhecimento da existência.
O esquema é simples, fácil e praticamente seguro, dada a inoperância do órgão fiscalizador. Munido da fotocópia da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) da vítima, o golpista apresenta essa pessoa como condutora, paga a multa e escapa da pontuação. Aparentemente, as conseqüencias não são tão graves, mas no caso de o real motorista ter atropelado e matado uma pessoa e, em seguida, cometido uma “infração” registrada pelo sistema eletrônico, a situação pode ficar muito séria.
Confusão
No caso do advogado, a suspensão do direito de dirigir foi devido ao excesso de pontos computados para ele. Assim que soube de sua situação verificou sua “conta” na internet (www.pr.gov.br/detran). Lá, apareciam três multas de carros que nunca dirigiu, cometidas no fim ano passado e início deste ano. “Só descobri que estava com 13 pontos a mais em minha carteira em maio”, contou. Assustado com a situação, Paulo foi procurar explicações junto as Urbs/Diretran, que lhe forneceu a cópias das guias de apresentação do condutor, onde apareciam seu nome.
A surpresa veio junto com a indignação: os três documentos apresentavam assinaturas dele falsas e diferentes entre si. “Falsificaram minha assinatura e ninguém conferiu ou pediu um documento comprobatório”, reclamou. A resposta da atendente do órgão foi que não havia “condições” de conferência e, uma vez que a multa é paga, ao processo não segue nenhuma fiscalização.
Paulo não lembra quando e quem tirou uma cópia de sua carteira de motorista; ele não alugou nenhum carro nem envolveu-se em acidentes. “Essas foram as primeiras perguntas que me fizeram quando fui reclamar dos pontos”, disse.
Quadrilha
Explicada a situação, o problema foi resolvido com espantosa rapidez e os pontos sumiram do histórico da habilitação do advogado. Paulo pensou, então, que o pesadelo havia acabado. Em agosto, resolveu consultar sua pontuação novamente e outra multa indevida estava registrada em seu nome e cinco pontos em sua CNH. “Minha indignação cresceu e percebi que alguém usava meu nome para escapar da pontuação”, denunciou.
Foi então que o advogado escreveu uma carta à Urbs/Diretran, pedindo uma explicação por escrito. A resposta oficial foi diferente das outras: ele terá de provar que a assinatura é falsa, pagando um perito grafotécnico para isso.
Notificações em outros endereços
Paulo nunca soube que estava sendo multado porque as notificações eram mandadas para outros endereços. Em um dos documentos de apresentação do condutor, protocolado em 23 de dezembro de 2002, ele estaria morando na Rua Alberto Bahr, Tarumã. O destinatário da correspondência, que seria o responsável pelo Fiat Mille, AGF-00XX, reside no Jardim das Américas. A mesma pessoa consta como proprietária do caminhão Fiat Ducato, GWZ-22XX, cujos pontos por infração cometida em 13 de novembro de 2002, também foram computados na carteira de Paulo. Nesses dois casos os veículos eram financiados.
Em outra apresentação do condutor, protocolada em 15 de janeiro deste ano, o endereço informado para ser o do motorista era na Rua Antero de Quental, Vila Lindóia, e o carro, o Voyage, CEM-01XX. A última notificação foi protocolada em 15 de abril deste ano, com o endereço na Rua Cruz e Souza, Guabirotuba, e o veículo o Golf, AMC-52XX. A infração foi cometida em março, conforme comprovam os boletins da internet.
Multas rastreadas
A Tribuna teve acesso às informações de dois infratores que apresentaram o advogado Paulo Cortellini como condutor do veículo. A situação deles no sistema de multas é a seguinte: um não apresenta nenhuma multa ou pontuação em CNH (a multa ainda está registrada na CNH de Cortellini) e a outra, apesar de ser proprietária do veículo, não aparece como pessoa habilitada, pelo menos no Paraná. As quatro multas que teriam sido computadas de maneira irregular ao advogado, também foram rastreadas pela Tribuna. Com exceção de uma delas, as demais foram assinaladas normalmente aos veículos infratores, porém a pontuação e punição aos verdadeiros motoristas desses carros provavelmente não aconteceu. Ainda de acordo com o extrato de débito dos veículos, nenhuma das multas foi paga e permanece em pendência. Dois veículos envolvidos nas infrações estão em situação de bloqueio.
Órgão não respeita as próprias normas
As falhas documentadas pelo advogado Cortellini, principalmente falsificação de assinatura e endereços inexistentes, só foram passíveis de aceitação pelos órgãos de trânsito porque não foram cumpridas as normas de apresentação de condutores em casos de infração. No site da Urbs/Diretran são as seguintes as orientações : verificar o prazo para apresentar o condutor que é de 15 dias a contar da data de recebimento da notificação de autuação; preencher corretamente o formulário em todos os campos; é obrigatória a assinatura do proprietário e do condutor do veículo; não esquecer de anexar a fotocópia da Carteira Nacional de Habilitação do condutor; todas as cópias devem ser autenticadas. Sem estes dados o documento não poderá ser cadastrado.
Desrespeitando as próprias orientações divulgadas, funcionários da Urbs/Diretran informaram que não é necessário entregar cópias dos documentos requisitados, apenas a ficha devidamente preenchida com os dados e a fotocópia da carteira de habilitação do condutor. Nem mesmo um comprovante de residência, onde seriam confirmados os dados preenchidos no documento oficial do órgão de trânsito (como nome completo, endereço e CEP) é solicitado.
Da forma como a apresentação de motoristas está sendo conduzida pela Urbs/Diretran as pessoas que tiverem CNHs furtadas, roubadas ou perdidas correm o risco de ser as próximas vítimas.
CNHs de mortos também podem ser usadas no golpe
Uma outra forma de burlar a lei é apresentar como condutoras pessoas que morreram recentemente. Como a CNH ainda está dentro do prazo de validade e não há necessidade de familiares informarem aos órgãos de trânsito sobre a nulidade do documento, golpistas se aproveitam da situação e usam a CNH de falecidos como o autores de infrações. Mais uma vez a falta de fiscalização facilita a fraude. Segundo a assessoria de imprensa do Detran/Paraná, ainda não foi verificado caso assim, mas é bem possível que isso esteja acontecendo e com certa regularidade. “Normalmente as pessoas que são usadas nesses golpes – os ?laranjas? – só tomam conhecimento disso quando vão renovar as CNHs. Com a pessoa morta isso não acontece, por isso não há como identificar o golpe”, informou uma assessora.
As fraudes na apresentação de condutores são de conhecimento do Detran e estão sendo investigadas. Somente nesse ano, 16 casos foram denunciados. Dez deles já tiveram concluídas as investigações e os resultados foram encaminhados para a Corregedoria da Polícia Civil e Ministério Público. Os outros seis ainda estão em investigação. Todos os casos recaem em crime e os responsáveis, se descobertos, devem ser punidos. Já os pontos das infrações cometidas ficam perdidos.
Vítimas
O número de pessoas lesadas pelo golpe deve ser bem maior, mas como poucas têm o costume de verificar se infrações de trânsito foram computadas irregularmente em seus nomes, a fraude passa despercebida. Portanto, uma dica para evitar esse tipo de golpe é consultar o sistema de multas do Detran (pela internet) regularmente. Qualquer irregularidade constatada, o usuário deve procurar o órgão de trânsito para esclarecimentos.
Um dos casos que está sendo investigado pelo Detran, por exemplo, uma motorista que reside em Ponta Grossa foi apresentada diversas vezes como condutora de veículos em Curitiba, sem sequer ter estado na capital paranaense nos dias citados pelas notificações de trânsito.