Maria Letícia Fagundes tem 26 anos de experiência na Medicina. Formou-se em 1985 pela Faculdade Evangélica e nove anos depois passou no concurso público estadual para legista do Instituto Médico-Legal (IML) do Paraná.
Com saudade lembra o tempo em que o órgão era referência nacional e que os médicos se orgulhavam de trabalhar ali. Hoje, sucateado, o IML ganha manchetes dos jornais por ter virado depósito de cadáveres, sem condições de atender a demanda da violência cotidiana.
“De 17 anos para cá, nós vimos o IML se decompor por descaso, pela falta de investimentos”, lamenta a médica, que na semana passada foi eleita presidente da Associação dos Médicos Legistas do Paraná.
A entidade também estava adormecida há quase dez anos, por conta do desestímulo de seus integrantes que não conseguiam ter voz ativa para reivindicar melhores condições de trabalho.
Quando a situação chegou ao fundo do poço, Maria Letícia resolveu agir. Reuniu-se com colegas da capital e do interior (ao todo são apenas 63 legistas na ativa, quando o ideal seria pelo menos 160 para atender o Estado) e decidiram reativar a associação e entrar na briga por melhores condições de trabalho e por um atendimento adequado à população.
Calados
Não se furtando das responsabilidades, Maria Letícia revela que os médicos tiveram sua parcela de culpa, quando se calaram diante das circunstâncias. Mas explica que o médico é um técnico e como tal, tem que resolver os problemas imediatamente.
“Nós fomos nos adaptando com o que tínhamos para trabalhar. Improvisávamos, dávamos um jeitinho, fazíamos o nosso trabalho dentro das condições que nos eram fornecidas”, afirma. Só que as condições de adaptação chegaram ao fim e o Instituto virou um caos.
Com a mudança de governo e o fim da intervenção realizada pelo governo anterior, com as denúncias na imprensa sobre o sucateamento do IML e o endosso da seção de direitos humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (Paraná) de que alguma coisa tem que ser feita com urgência, os legistas se sentiram estimulados a dar a “por a boca no trombone” e exigir melhorias.
“As pessoas precisam entender a importância do nosso trabalho. Em um corpo com 20 tiros, só o legista pode apontar qual foi o tiro fatal. O perito pode indicar de que arma saiu aquele tiro e com estas informações a polícia pode prender o responsável pelo crime”, explica ela, didaticamente.
E não é só em casos de mortes que o legista atua. Existe no IML a clínica que atende os casos de lesões corporais, violência sexual, e outros. Os laudos produzidos pelos legistas são peças fundamentais para o processo criminal e neles é que se baseiam promotores e juízes para penalizar criminosos. “Nosso trabalho é essencial, não pode deixar de existir”, salienta.
Falta espaço, médico e salário
Anteontem, Maria Letícia esteve em reunião como o secretário da Segurança Pública, Reinaldo de Almeida César, para pedir agilidade na reformulação do IML e estipular prazos para que as mudanças aconteçam, mas saiu decepcionada.
A principal reivindicação é para abertura de concurso para contratação de novos legistas, seguida da redução do tempo para progresso na carreira, uma vez que pela legislação atual (lei 14678 de 2005) o legista tem que trabalhar 60 anos para chegar à 1.ª classe.
Quando passa no concurso, o médico ingressa na 4.ª classe e tem que permanecer 15 anos nela para chegar à 3.ª. E assim sucessivamente. Atualmente a 4.ª classe está inchada, o que impossibilita o ingresso de novos profissionais, e não há médicos nas demais classes. Sem contar que o salário de ingresso é pouco atrativo: R$, 2.280,00.
A estrutura física do IML também não comporta mais a demanda. O antigo prédio na Avenida Visconde de Guarapuava, nos fundos do Instituto de Criminalística, está pequeno demais.
“Precisamos de nova sede”, diz a médica, elencando a necessidade de contratação de mais pessoas para o atendimento direto à população (no recolhimento dos cadáveres), motoristas, secretárias, auxiliares de necropsia e mais viaturas.
Porém Reinaldo César afirmou no encontro que a prioridade da gestão é construir um novo prédio para o IML de Curitiba, o que será feito sem licitação, para que a obra saia mais rapidamente.
“A primeira ação do governo deveria ser a valorização dos bioquímicos, toxicologistas, auxiliares de necropsia e médicos porque se não fossem eles carregarem o IML nas costas, o Instituto já teria fechado”, lamentou a legista. “Enquanto se revisa as questões humanas, se tem tempo de fazer uma licitação para construção de um prédio, para que não existam dúvidas sobre o procedimento”, afirmou Letícia.
Quanto à reparação das distorções salariais e da progressão da carreira, o secretário não estipulou nenhum prazo. “Somos contra investir milhões em um prédio enquanto temos auxiliares de necropsia por exemplo ganhando muito mal. A prioridade não pode ser a parte física, mas sim o pessoal”, disse ela.
Corpos empilhados no puxadinho
Sobre o período de interdição sofrido pelo IML, Maria Letícia só tem a lamentar. “Até hoje não sei por que isso ocorreu. Nunca nos foi explicado”, diz ela. O comando do IML ficou ao cargo de um coronel bombeiro e os serviços eram feitos por policiais militares.
“O que aconteceu foi que fizeram um puxadinho e montaram mais uma câmara fria, onde empilharam cadáveres por mais de dois anos. Nada mais”.
A distância que se instalou entre os funcionários de carreira e o interventor prejudicou ainda mais o trabalho.
Um clima de desconfiança reinou nos últimos dois anos e a falta de diálogo e ajuda mútua fez com que o que já era ruim, piorasse. Funcionários e médicos insatisfeitos, comandados por pessoas sem preparo técnico para a função, resultaram na bomba que agora veio a explodir.