Depois de dormir por mais de três meses com o corpo do marido enterrado embaixo de casa, mais precisamente sob o assoalho da cozinha, a dona de casa Orlinda de Lima Leonardo, 49 anos, tomou um porre, ?deu com a língua nos dentes? e revelou um assassinato que poderia nunca ter sido descoberto. A partir dali, ela e o ex-amante Ademir Pires da Rocha, 53 anos – acusados do crime – iniciaram um calvário que durou quase três anos, em celas fétidas das delegacias da Região Metropolitana de Curitiba. Levados a julgamento, foram absolvidos pelo homicídio e, ela, condenada pela ocultação do cadáver. A história parou aí e os responsáveis pelo assassinato e esquartejamento do pintor de paredes João Antônio Leonardo, 45 anos, jamais foram punidos. A polícia não voltou a investigar o caso. O promotor, responsável pela acusação, preferiu não recorrer da sentença do Tribunal do Júri, e a defesa, por motivo óbvio, deixou a coisa como estava.
Este é o caso que o leitor vai conhecer a fundo, a partir de hoje, em mais uma série de reportagens da Tribuna na Justiça. Dividida em seis capítulos, a história vai comover, provocar raiva e outros sentimentos, mas acima de tudo demonstrará a carência de um verdadeiro processo de investigação para elucidar um crime contra a vida. A polícia baseou-se somente na troca de acusações entre os suspeitos e não buscou nenhuma prova que pudesse esclarecer o crime e punir os culpados, fossem quem fossem. A Justiça não foi feita e o assassinato de João Antônio Leonardo, um homem pacato e de vida simples, vai figurar, quem sabe para sempre, no rol dos insolúveis.
Vidas cruzadas
Orlinda, casada com João, queria novas aventuras. |
João Antônio era pintor de paredes, funcionário da Prefeitura Municipal de Curitiba. Sujeito boa praça, mas que tinha um único – e grande – defeito. Era dado ao vício da embriagues. Às vezes passava a noite no boteco e chegava em casa trançando as pernas. Em outras ocasiões, a mulher, Orlinda de Lima Leonardo, com quem estava casado há 20 anos, ia à sua procura e o reconduzia ao lar: uma casa modesta em Almirante Tamandaré, na Rua Paranaguá, 121, bairro Cachoeira. Lá também moravam o filho mais velho do casal e a irmã dele, mais nova, fruto de um relacionamento de Orlinda com outro homem, conhecido como ?Negão?.
O casamento era só de aparência. Eles dormiam em camas separadas, mas mantinham uma grande amizade. Orlinda garganteava que tinha outros namorados e saía com os ?amantes?, sem que isso abalasse João Antônio. Ele, por sua vez, também mantinha casos extra-conjugais, no que atualmente chamam de relação aberta. Naquela época, porém, final de 1999, a situação causava estranheza a quem dela tomava conhecimento. Mesmo dentro deste clima de camaradagem, quando se embriagava, João Antônio ia atrás da mulher e brigava com quem a estivesse acompanhando. Provavelmente um sinal de que demonstrava sua verdadeira emoção quando estava embalado pela bebida.
Ademir e Neiva
Neiva é um exemplo de obstinação e tolerância. |
Assim como João Antônio, trabalhava na Prefeitura de Curitiba o motorista Ademir Pires da Rocha, na época com 46 anos, que também morava em Tamandaré, na Rua São João, 777, Monte Santo. Igualmente um boa praça, bem quisto pelos colegas de trabalho. Casado com Neiva Terezinha Gomes de Goes (sua segunda mulher), então com 49 anos. O casal tinha dois filhos, já quase adultos. A amizade entre Ademir e João Antônio nasceu espontaneamente.
Visitaram-se e apresentaram suas respectivas mulheres. Chegaram a viajar juntos para a Praia de Leste, onde Ademir e Neiva tem uma pequena propriedade. João fez serviços de pintura na casa de Ademir e durante muitos anos deram-se bastante bem. Até que, por desgraça do destino, Orlinda e Ademir se engraçaram um com o outro e iniciaram um romance. Neiva desconfiou, mas João teve certeza. Perguntou ao amigo se ele estava saindo com sua mulher e teve resposta afirmativa. Apenas confidenciou que iria se separar dela, mas não tomou nenhuma atitude imediata.
João, cujo pecado era se embriagar, foi assassinado. |
Orlinda, não contente em sair com o marido de Neiva, fez questão que a rival soubesse de seu relacionamento com ele e, para tanto, escreveu duas cartas anônimas endereçadas à Neiva, revelando o caso amoroso. Ademir se irritou com a atitude da amante e achou por bem encerrar o romance. Afinal, Orlinda já lhe devia algum dinheiro (fez com que comprasse uma estante na Disapel, em várias prestações, e nunca as pagou, deixando-o com a dívida).
As coisas poderiam ter parado por aí, caso João Antônio não desaparecesse misteriosamente, na noite de 27 de novembro de 1999. Seu corpo, ou o que restou dele, foi encontrado 103 dias depois, enterrado, aos pedaços, embrulhado em papel alumínio e dentro de sacolas plásticas, embaixo do assoalho da casa onde morava com a mulher e os filhos.
*Na edição de amanhã o leitor saberá como Orlinda agiu para tentar esconder o assassinato.