Não são raras as notícias de bebês que foram cruelmente abandonados pelas mães em sacos plásticos, caixas ou panos, em lugares inóspitos, sujos, muitas vezes perigosos. O fato choca e, quando sobrevive, a criança se torna heroína por conseguir, ainda que na mais cruel das situações, manter-se viva sem ao menos poder defender-se. O abandono de crianças, seja em mãos desconhecidas ou de forma a oferecer risco para a vida do bebê, é fato presente no cotidiano do Brasil e de outros países há muito tempo. Tanto que nações européias, como a Itália, recriaram a prática medieval que era chamada de a roda dos expostos, um local apropriado para mães que não podiam criar os filhos deixarem-nos nos conventos para adoção, anonimamente.
Agora, porém, o local é moderno, e de nada lembra o ?equipamento? da Idade Média: trata-se de um berço instalado em hospitais com sensores que avisam a equipe médica de que alguém deixou um bebê, sem revelar a identidade da mãe.
A pesquisadora Rosane de Albuquerque Porto, da Universidade do Sul de Santa Catarina, conta que o assunto lhe chamou a atenção ao ler a obra do escritor carioca José Vieira Fazenda entitulada A roda. O Brasil também adotou a prática no século XVIII nas Santas Casas de Misericórdia, extinta apenas no governo Getúlio Vargas. Ela fez uma dissertação de mestrado sobre o tema. ?Me impressionou por mostrar a questão do abandono de crianças relacionado a um mecanismo trazido da Europa para cá para resolver um problema daquela época que acontece agora?, afirma a pesquisadora.
O sistema, entretanto, viveria o paradoxo da caridade versus a exclusão. ?Ao mesmo tempo em que tirava da rua e colocava sob os auspícios do governo, excluía, porque a criança crescia com o estigma do abandono.? Se hoje seria uma alternativa a ser adotada no País novamente, a pesquisadora vislumbra outra perspectiva. ?Não sei se a roda dos expostos resolveria. O que eu percebo é que a roda, uma vez sendo criada hoje em países ditos desenvolvidos, exercita de certo modo a questão do biopoder (ou o controle do Estado sobre quem vai viver). O que é preciso é o governo dar conta da situação, com ou sem a roda. O que a gente não pode mais ver são crianças abandonadas?, analisa.
Salvando vidas
Há quem acredite que pensar a volta do sistema no Brasil é válido, justificando não ser possível ignorar o cenário de abandonos e que uma medida como essa salvaria vidas.
O teólogo e filósofo Domenico Costela, professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), acredita que a retomada da prática se encaixa dentro da visão ética do mal menor. ?A ética lida com as situações ideais e as concretas. O ideal é que os filhos fiquem com os pais, mas, às vezes, pela pobreza e medo, o desespero pode levar ao abandono. Nesse caso, é melhor que fiquem num lugar seguro.?
Para ele, assim como para o médico Cícero Urban, presidente da Associação dos Médicos Católicos da Arquidiocese de Curitiba, a iniciativa ajudaria inclusive a evitar abortos clandestinos. ?O mais importante mesmo seria a maternidade responsável, com educação sexual. Mas, se aumentam os casos de abandono, é de se pensar na adequação do sistema?, sugere.
Mestre em psicologia social, Neuzi Barbarini afirma que, em vista de boa parte dos abandonos acontecerem por razões financeiras e sociais, um dispositivo que proporcionasse a entrega do bebê sem prejuízo à vida seria importante para mães que não dispõem sequer de estrutura emocional – e o anonimato contaria muito nesse momento. ?Essa mãe sofre com a falta de informação e medo, e é preciso lembrar que muitas sequer têm o filho no hospital.?
Alguns são contrários à medida
Na direção oposta a quem defende a volta da prática da entrega anônima, há os que criticam essa possibilidade. O juiz da 2.ª Vara da Infância e Juventude de Curitiba, Fabian Schweitzer, luta para que, no caso de optar por não ficar com o filho, a mãe o faça de forma bem orientada, entregando-o à Justiça para que seja adotado legalmente por outra família. ?O abandono com risco é movido pelo desprezo e tem de ser censurado, mas a solução é educar. Há dez anos vou a escolas e igrejas para tentar mostrar que o lado nobre dessas mães desaparece ao cometer um ato desses (o abandono) e que há alternativas legais para que ela doe o filho. Ela não será punida por isso?, garante.
Para o juiz, a roda dos expostos, nome que prefere substituir por roda da vida, incita não à resolução do problema, mas apenas à dor do desprezo – e, por isso, não seria o caso de ser repensada. ?Não se trata de uma alternativa, mas de uma medida paliativa. A criança pode ser adotada e ficar bem, mas ela vai para adoção sem a sua história?.
A secretária da Criança no Paraná, Telma Alves de Oliveira, também é contrária à prática. ?Acredito que não deve haver política para isso porque, assim, cria-se um fluxo de demanda. Acho que tem de haver serviços de emergência, instituições preparadas para receber as crianças, um serviço nos próprios hospitais de identificação dos indícios de rejeição. É como se o serviço de saúde tivesse responsabilidade técnica de acompanhar a saída da mãe com o filho?, avalia. É o que acontece, por exemplo, no Mãe Curitibana, programa da prefeitura no qual a equipe atua de perto durante toda a gestação e estimula à aproximação – e, caso a mãe realmente não queira ficar com o filho, dá orientação adequada de doação. (LM)