Crianças aliciadas pelo tráfico

O envolvimento de crianças recrutadas pelo tráfico de drogas deixou de ser uma exclusividade dos morros cariocas. Em Curitiba, na Vila das Torres, isso já é uma triste realidade. Crianças e adolescentes que antigamente apenas presenciavam o vaivém de drogas entre adultos, agora participam ativamente do comércio, cometendo delitos e pagando, às vezes, com a própria vida pelo não-cumprimento de normas específicas que o tráfico impõe.

A participação de crianças que trabalham como “mulas” (realizam entregas de armas e drogas na favela) ficou evidenciada no início desta semana, quando duas delas foram baleadas na madrugada de terça-feira, na Rua Dorival Almir Zagonel, na Vila das Torres. Um garoto de 11 anos levou um tiro de escopeta calibre 12 na perna, que fraturou o fêmur, enquanto uma menina de 4 anos foi atingida de raspão. As vítimas estavam dentro de casa quando foram feridas, acompanhadas de outras crianças e adultos.

A Delegacia de Homicídios investigou o caso e levantou fatos e testemunhos que comprovaram que o atentado tinha como alvo as crianças, modalidade de crime que ainda não estava em evidência em Curitiba.

De acordo com o delegado Stélio Machado, titular da DH, os marginais – que seriam sete homens – chegaram ao local em um carro, pararam em frente à residência e, armados com pistolas e escopetas, invadiram o local. “Com o recrutamento de crianças para trabalhar junto ao tráfico elas também se tornaram alvo de vingança. O grupo invadiu a casa atrás delas e não dos pais”, explicou o delegado. “O que era visto no Rio de Janeiro há mais de uma década está sendo utilizado hoje em Curitiba”, afirmou.

Invasão

De acordo com as investigações realizadas pelas delegacias de Homicídios e Furtos e Roubos, a casa foi invadida pelo grupo. Empunhando uma espingarda calibre 12, Fábio Pereira de Souza, 21 anos, mais conhecido por “Pinóquio” e apontado como um dos líderes de uma das gangues que atua na região, foi o primeiro a entrar na casa. “Ele não poupou nem mesmo um cachorro que correu para baixo da cama, pois pensou que era um de seus desafetos que estava tentando se esconder”, disse Stélio. Outros homens também atiraram, pois na residência foram encontrados projéteis de diversos calibres.

As duas crianças feridas foram socorridas por vizinhos e encaminhadas ao Hospital Cajuru.

“Arrastão” fecha a favela

Para dar uma resposta à ação de traficantes na Vila das Torres, que a cada dia se sentem mais poderosos e audaciosos, a polícia resolveu realizar uma grande operação que fechou a favela na tarde e início da noite de ontem. A operação denominada “Segurança não tem idade” contou com a participação de aproximadamente 40 homens da Polícia Civil divididos em grupos da Delegacia de Homicídios, Centro de Operações Policiais Especiais (Cope), Delegacia de Furtos e Roubos e da Divisão de Narcóticos (Dinarc). Uma equipe do Conselho Tutelar também acompanhou a operação.

O objetivo principal da ação era identificar e prender indivíduos que estão recrutando crianças para a prática de crimes. Além dos menores baleados na madrugada de terça-feira, o delegado Stélio Machado, que ficou responsável pela operação, disse que outras duas crianças foram baleadas, intencionalmente e em situações distintas, devido ao envolvimento precoce com o tráfico de drogas. “Mas os pais, por medo, não registraram boletim de ocorrência”, explicou o policial.

Blitz

A operação teve início por volta das 16h. Mais de dez viaturas da Polícia Civil se dividiram e ocuparam várias partes da favela. Foram revistados bares, locais suspeitos, motocicletas e carros que circulavam pela Vila das Torres. Até o final da tarde, pelo menos 15 pessoas haviam sido detidas para averiguação, pois estavam sem documentos ou com suspeita de ligação ao narcotráfico. Seis pessoas que constavam no sistema da polícia como foragidas também foram recapturadas. Foram apreendidas pequena quantidade de maconha e “maricas” (cachimbo utilizado para o consumo da droga) e um revólver calibre 38, série especial e de longo alcance, com farta munição.

O principal objetivo da operação, que era caracterizar o uso de crianças como “mulas”, foi concretizado logo na primeira batida policial. Uma das meninas que fora baleada (e cuja ocorrência não havia sido registrada) foi localizada e recolhida pelo Conselho Tutelar. A mãe dela foi detida minutos antes, por policiais da Dinarc, portando maconha. Ela foi encaminhada àquela especializada para prestar esclarecimentos.

Cão

Para realizar algumas inspeções, os policiais, que estavam bem armados com pistolas, fuzis e metralhadoras, contaram com a cooperação do pastor alemão “Axel”. A Rua Guabirotuba, principal via do local, foi bloqueada e veículos vistoriados por policiais do Cope. “A operação conjunta tem o sentido de coibir ações criminosas. A intenção é estender esse tipo de trabalho para outros bairros que apresentam problemas com o tráfico”, explicou o delegado Marco Goes, da Subdivisão de Operações do Cope. O delegado Machado também afirmou que estava satisfeito com a operação. “O saldo foi positivo”, finalizou o delegado.

Inicialmente a operação deveria ter contado com a cooperação da Polícia Militar, mas esta não se fez presente. A PM deveria se posicionar estrategicamente fechando as saídas da favela, conforme as primeiras instruções passadas pelo comando da operação. Durante a permanência da reportagem no local, apenas uma viatura da Ronda Ostensiva de Natureza Especial (Rone) foi vista prestando apoio.(CB)

Presos dois suspeitos de ferir crianças

Diante da gravidade da constatação de que crianças estariam sendo utilizadas por traficantes, a polícia intensificou suas diligências e, no final da tarde de terça-feira, já havia prendido dois suspeitos de participar do tiroteio que feriu menores. Foram presos Fábio de Souza, o “Pinóquio” e Everton Lima Santos, 21 anos. Além deles, outros cinco homens já estão com mandados de prisão expedidos pela Justiça. Os presos negam qualquer ligação com o tráfico ou com o tiroteio que feriu as crianças. Entretanto, testemunhas os reconheceram, segundo informou o delegado. “Pinóquio” saiu há dez dias da prisão, através de um alvará de soltura.

Conforme os depoimentos prestados à DH, a Vila das Torres está dividida ao meio e cada lado é liderado por uma facção criminosa. A divisão se dá pelo Rio Guabirotuba, que corta a favela em duas partes. O atentado contra as crianças também está relacionado a isso e principalmente ao sumiço de 50g de maconha. De acordo com o delegado Stélio Machado, foram roubados 50g de droga de um traficante do lado esquerdo da favela e o autor do roubo pertence ao lado rival. Entretanto, o ladrão da droga foi alvejado logo depois, dando início a uma guerra pelo controle de pontos de venda de entorpecentes na região.

Acerto

A atuação dos marginais ao balear as crianças foi um acerto de contas e demonstração de poder. Tanto que a mãe do garoto baleado é investigada por envolvimento com a venda de drogas e inclusive já responde por esse crime, de acordo com a polícia. O delegado Stélio destacou a rápida intervenção da polícia nesse caso, apesar da dificuldade encontrada para obter informações na Vila das Torres, onde predomina a lei do silêncio. “A população de lá teme pela própria vida”, enfatizou o policial.

Grupos de WhatsApp da Tribuna
Receba Notícias no seu WhatsApp!
Receba as notícias do seu bairro e do seu time pelo WhatsApp.
Participe dos Grupos da Tribuna
Voltar ao topo