A julgar pelas irregularidades cometidas no show Unidos pela Paz, o evento jamais poderia ter ocorrido, e a tragédia – que resultou na morte de três adolescentes e ferimentos em mais de 40 pessoas – poderia ter sido evitada. O Corpo de Bombeiros não havia autorizado a realização do show. Uma vistoria foi feita no Jockey Club do Paraná e foi constatado não haver as condições mínimas de segurança e controle exigidas para eventos desse porte.
Além disso, a organização se recusou a pagar a taxa de R$ 700,00 para que policiais militares fossem deslocados para ajudar na segurança do evento. A Polícia Militar recebeu o pedido para fazer a segurança – que é feita de graça em eventos de cunho beneficente ou esportivo – mas havia comunicado sobre a taxa, cobrada para eventos com caráter lucrativo. Até a noite de sexta-feira, anterior ao show, os organizadores não haviam dado resposta sobre o pagamento. De acordo com o comando da PM, a atitude deixou implícito que os promotores se responsabilizariam pela segurança, contratando agentes particulares em número suficiente para evitar tumultos, o que não aconteceu.
Responsabilidade
O Ministério Público já está atento aos fatos ocorridos no último sábado. O promotor João Henrique Vilela da Silveira, da Promotoria de Defesa do Consumidor, afirmou que está apenas aguardando documentação requerida à Polícia Militar e ao município para iniciar a ação. Na opinião dele, o Jockey Clube, embora tenha apenas alugado o espaço e não seja responsável direto pela organização do show Unidos pela Paz, deverá responder na mesma ação, por um mecanismo da lei do consumidor definido como “responsabilidade solidária”.
Ação
Pesa também sobre o Jockey uma ação civil pública, de outubro de 2001, também feita pela Promotoria de Defesa do Consumidor. Naquela época, o MP constatou irregularidades em um show da dupla Bruno e Marrone, que aconteceu naquele local. De acordo com o promotor Silveira, o Jockey não apresenta condições de segurança e os promotores do show de 2001 não cumpriram uma série de exigências legais para realização do evento.
A ação pedia interdição cautelar das dependências do Jockey para promoções e eventos. O então juiz da 10.ª Vara Cível negou o pedido liminar de interdição. Em 23 de abril deste ano, o juiz Fernando Antônio Prazeres, da mesma Vara, proferiu decisão sobre o caso, decretando extinção do processo sem julgamento do mérito. Mas, de acordo com o promotor, o MP vai recorrer desta decisão.
Podem sair mais prisões
O delegado Stélio Machado, da Delegacia de Homicídios, informou ontem que além do empresário Ataíde de Oliveira Neto, 23 anos, outras pessoas que organizaram o show Unidos pela Paz, com apresentação das bandas Raimundos, Natiruts, Tihuna e Charlie Brown Júnior, podem ter suas prisões decretadas nas próximas horas. “Estamos investigando se houve negligência de outras pessoas”, salientou.
Carlos Humberto Fernandes Silva, advogado do empresário Ataíde, esteve ontem à tarde na Delegacia de Homicídios e prometeu apresentar seu cliente nas próximas horas. Ele disse que em nenhum momento seu cliente se negou a comparecer na delegacia. O show, acontecido no sábado, foi marcado por uma tragédia, com três adolescentes mortos e pelo menos 40 pessoas feridas. Todos foram pisoteados. “Quando soube da ameaça de prisão, entrei com habeas corpus preventivo, mas o juiz decretou a prisão”, lamentou o defensor.
Já policiais da Delegacia de Homicídios entendem que o organizador tem culpa. “Houve dolo eventual. Assumiu o risco de produzir o resultado lesivo. Haviam muitas pessoas no local e não tinha a segurança necessária”, salientou o delegado Stélio Machado, que assumiu a DH ontem. Ele comentou que os organizadores deveriam ter solicitado policiais militares no local. “Como é uma empresa, vamos verificar se é idônea e se há outros envolvidos na organização. Se for necessário vamos solicitar a prisão deles também”, enfatizou o delegado.
Desespero
Os portões de acesso abriam às 19h, mas devido ao grande número de pessoas, havia fila de aproximadamente um quilômetro às 21h20, quando a banda Raimundos começou a tocar. Pessoas com ingressos na mão forçaram a entrada, dando início a um tumulto. Segundo informações, os fãs foram espremidos contra os portões de acesso, bloqueados pela segurança particular do evento, quando o local lotou. Na confusão, jovens caíram um sobre os outros, atropelados pelos que vinham atrás. Os estudantes Larissa Cervi Seletti e Jonathan Raul dos Santos, ambos de 15 anos, morreram pisoteados no local. Mariá de Andrade Souza, 14, foi levada pelo Siate ao Hospital Cajuru, onde chegou sem vida. Além deles, cerca de 40 pessoas ficaram feridas, algumas em estado grave. (VB)
Drogas, álcool e indignação
Durante todo o dia de ontem a Tribuna recebeu centenas de telefonemas e correspondências eletrônicas com relatos dramáticos, de pessoas que foram pisoteadas ou viram outras sendo feridas, sem que nada pudessem fazer para evitar o tumulto. Vítimas e testemunhas do triste episódio fizeram fila na Delegacia de Homicídios para prestar depoimento. Todos demonstraram estar indignados e pedem providências às autoridades.
Adultos que acompanharam adolescentes no show também contaram, horrorizados, que houve uso indiscriminado de drogas durante todo o evento. Não só o consumo de bebidas alcoólicas, mas jovens de pouca idade usavam maconha, crack e cocaína a olhos vistos, sem o menor constrangimento e sem que nenhuma autoridade policial os coibisse.
Relato
A transcrição abaixo mostra um dos protestos:
“Meu nome é Fabiane, tenho 23 anos e gostaria de registrar o meu comentário sobre o absurdo que foi a falta de organização do show de sábado.Cheguei por volta de 21h. Imaginei que este horário não haveria uma fila tão grande, então encontrei alguns amigos que estavam próximos ao portão. Estava cheio, mas até então não havia tumulto. Pouco depois uma garota estava atravessando a fila com um garoto em uma cadeira de rodas, foi quando começou o tumulto, fiquei presa entre a cadeira de rodas e as pessoas que me empurravam; a cadeira virou e o garoto caiu entre as pessoas, a cadeira fechou e caí sobre ela. Não conseguia me mexer, pois as pessoas estavam sobre minhas pernas, tentava me apoiar nas pessoas, mas teve um momento que achei que fosse morrer, não tinha mais forças e pensei em me soltar e deixar que passassem por cima de mim, para acabar logo com aquilo… Foi quando consegui me agarrar em alguém que estava do meu lado e me puxaram… Quase não conseguia respirar, estava muito abafado. Conseguiram abrir um pequeno espaço, quase desmaiei, pois ficava tudo escuro e não sentia minhas pernas, mas consegui sair daquela situação e sinto demais por terem pessoas que passaram por isso e não tiveram a mesma sorte. Realmente lamentável. Gostaria de saber como ficou o garoto da cadeira de rodas, mas acredito que não seja possível. Agora só espero que algo seja feito. Isso aconteceu pela falta de organização e respeito pelas pessoas”.