Quando a polícia conseguir juntar todas as peças do quebra-cabeça, a execução de Almir poderá ser esclarecida. |
O sonho de legalizar o jogo do bicho, transformando-o no “jogo dos sonhos”, e a ousadia de invadir o mercado das apostas com máquinas caça-níqueis, que começaram a tomar boa soma das quantias arrecadadas pelos bicheiros da capital, seriam os motivos do assassinato de Almir José Hladkyi Solarewicz, 45 anos, empresário de pulso firme, que fazia vingar suas idéias e desafiava os concorrentes. Embora a polícia costume afirmar que “em se conhecendo o motivo” é fácil chegar aos criminosos, a morte de Almir, que amanhã completa três anos, ainda permanece misteriosa.
Dois inquéritos policiais foram instaurados – com um espaço de quase dois anos entre um e outro – para a apuração do crime. Dezenas de nomes são citados nas centenas de páginas que compõem os grossos volumes dos processos; nelas, há trocas de acusações entre familiares do morto e suspeitos; denúncias de pagamentos de propinas; ameaças de novas mortes; negativas de autoria e relatos de uma série de fatos que deixam qualquer um de cabelos arrepiados. Porém, não há uma única prova material da autoria do crime – muito embora exista um acusado preso – ou que indique seus mandantes, além dos testemunhos.
Passados três anos – o crime aconteceu por volta das 19h30 de 20 de setembro de 2000, na Rua Euzébio da Motta, em frente a um estacionamento e a 50 metros da casa de Almir – o primeiro inquérito, então instaurado pela Delegacia de Homicídios, se transformou em ação penal que corre pela 5.ª Vara Criminal, tendo como réu Otaviano Sérgio Carvalho de Macedo, o “Serginho”. Ele e outros dois homens teriam executado a vítima com sete tiros de pistolas. Os outros dois acusados não são identificados nessa ação penal, que está em fase final, com a coleta de depoimentos de testemunhas de defesa e de acusação. Terminado esse procedimento, o juiz deverá decidir se “Serginho” vai ou não a júri popular.
Outro
O outro inquérito, porém, instaurado quase que por acaso pelo delegado Gerson Machado, então titular do 6.º Distrito Policial, parece que terá mais substância. Machado “tropeçou” na morte do bicheiro em junho de 2002, ao investigar um caso de fornecimento de notas fiscais frias. A viúva de Almir, Ivana Vasconcellos Innocêncio, 39 anos, resolveu abrir a boca e, em depoimento na delegacia, denunciou os “capos” do jogo do bicho de Curitiba como os mandantes da execução. Ela contou os motivos e informou detalhes das operações comandadas pelo marido, canalizando suas acusações para Francisco de Paula de Castro Feitosa – ou apenas “Chico Feitosa”, como é mais conhecido – e Fúlvio Martins de Oliveira.
Os investigadores também se empenharam e, de acordo com os relatórios que apresentaram aos superiores – hoje documentos anexados ao inquérito que está na Promotoria de Investigações Criminais (PIC), para apreciação dos promotores – apuraram os nomes dos dois outros envolvidos diretamente na morte de Almir e até do mandante do crime. De acordo com os policiais, além de “Serginho”, participaram da execução Gláucio Cerqueira Muneron, e o ex-policial militar Manfredo Flores Mondragon. O autor do plano de morte seria Ricardo Cavalcanti de Andrade Lima. Todos teriam agido por ordem dos líderes da “cooperativa dos bicheiros”, entidade criada pelo próprio Almir para fortalecer a categoria e regularizar o suposto esquema de pagamento de propinas. No ano em que foi morto, Almir tinha se desligado da cooperativa para investir no ramo dos caça-níqueis e trabalhava, junto com um advogado argentino, na possibilidade de legalizar o jogo do bicho. Mesmo assim, ainda recebia 4,8% do faturamento de todo o jogo.
Defesa
“Serginho”, que está recolhido no Centro de Observação e Triagem (COT), ao lado da Prisão Provisória de Curitiba, no Ahu, nega terminantemente qualquer envolvimento no assassinato. Ele responde a outros inquéritos – é suspeito de pelo menos dois outros crimes de morte, inclusive em que foi vítima o policial civil Antônio Roberto Spósito, em 1994 – e garante que estava com sua mulher e filhos, em casa, quando Almir recebeu os tiros.
Mondragon está solto – cumpriu pena de 1995 a 2000 – e foi excluído da Polícia Militar a bem do serviço público. Ele estaria ainda trabalhando como segurança de Feitosa e também nega o crime. De Ricardo Lima não se tem notícia, assim como de Gláucio Cerqueira. Para os quatro, a “cooperativa” teria pago R$ 500 mil para “quebrar o milho”, ou seja, matar a pessoa que estava incomodando. A quantia foi revelada pelos investigadores do 6.º DP, em relatório, mas como é de se supor, não há nenhuma prova sobre isso.
Já Feitosa e Fúlvio esperneiam toda vez que têm os nomes relacionados com o assassinato. Seus advogados apressam-se em enviar longos desmentidos, assegurando que as acusação são infundadas e que não passam de devaneios de Ivana e de um dos filhos de Almir, Marco Antônio Carlos Solarewicz, 25, que aparece no processo como assistente de acusação.
Marco revela que após a morte do pai foi ludibriado pelos “capos” do bicho e convencido a colocar todas as máquinas caça-níqueis de propriedade de Almir – aquelas que ainda não haviam sido roubadas supostamente a mando da “cooperativa” – em um barracão para guardá-las, até saber o que iria fazer. Mais tarde soube que o barracão também pertencia aos bicheiros e eles ficaram com todas as máquinas que, posteriormente, foram recolocadas no mercado.
Sete tiros, um de misericórdia
Era início de noite de quarta-feira, 20 de setembro de 2000, quando Almir Solarewicz, 45 anos, deixou seu escritório, em companhia da mulher, Ivana Vasconcellos Innocêncio. Como cada um estava com seu próprio carro, ele seguiu Ivana até o portão da garagem do prédio onde moravam. Ela entrou e Almir dirigiu-se ao estacionamento onde costumava deixar seu próprio veículo, na Rua Euzébio da Motta, no Juvevê.
Tão logo estacionou, o celular tocou. Almir atendeu e iniciou conversa com Luiz Carlos Alves Sobrinho, comerciante instalado no Xaxim. Ambos marcavam um encontro para o dia seguinte, para falar sobre máquinas de caça-níqueis. Enquanto falava, ele caminhou até a rua, acompanhado pelo dono do estacionamento e por outro cliente do local que também havia acabado de chegar. Cruzou o portão, andou cerca de 50 metros e foram ouvidos tiros. “Estão atirando em mim”, teria dito a vítima ao telefone. Dois homens se aproximaram e começaram a atirar. Um usava chapéu e outro estava com a cabeça descoberta. Almir correu, passou para o outro lado da calçada, mas caiu em seguida, atingido nas costas. Ele teria pedido para que não o matassem. Os assassinos, no entanto, não se comoveram. Aproximaram-se e dispararam o tiro de misericórdia contra sua cabeça. Ao todo ele foi atingido por sete balaços de pistolas calibres 380 e 9mm. Na seqüência saíram correndo. Estariam sendo esperados nas proximidades por um terceiro indivíduo, ao volante de um carro, pronto para a fuga. Estava escuro e a rua mal-iluminada não permitiu às testemunhas visualizarem o rosto dos criminosos. No entanto, a empregada de um dos apartamentos do prédio em frente ao estacionamento, que saía bem na hora do tiroteio, deu de cara com um dos criminosos. Ela reconheceu Otaviano Sérgio Carvalho de Macedo, o “Serginho”, como sendo um dos matadores.
Do romantismo à violência
O bicho já teve seu lado “romântico” e ganhou fama entre os apostadores de ser o jogo “mais honesto do Brasil”. Até hoje atrai milhares de apostas todos os dias e movimenta, em Curitiba e Região Metropolitana, cerca de R$ 1 milhão por dia em seus mais de 7.500 pontos. Antigamente o dono de cada ponto recebia em média 25% do valor arrecadado. As apostas eram feitas manualmente e colocadas em envelopes que então eram coletados – juntamente com o dinheiro – e levados para a banca de determinado bicheiro. Cada bicheiro podia ter inúmeros pontos em cada bairro e cerca de 50 motociclistas realizavam o serviço de coleta para cada banqueiro.
Como cada um cuidava de si, o jogo do bicho não enfrentava problemas como disputa pelo poder. Os maiores problemas eram os financeiros, quando a banca perdia muito e mesmo assim pagava as apostas para não perder a credibilidade.
Em 1995, depois de uma grande investida do governo do Estado contra o jogo do bicho, que ganhou o nome de “Operação Grande Festa”, os bicheiros, por sugestão de Almir Solarewicz, uniram-se em uma cooperativa, hoje comandada por Francisco Feitosa (foto). Eles somaram as forças dos bicheiros da capital e alguns do interior, centralizando os valores arrecadados e a posterior distribuição. Almir foi o líder da cooperativa durante algum tempo, até decidir vender sua parte e ficar com somente 4,9% do rendimento total arrecadado pela organização. Há cerca de 3 anos Almir quis legalizar o jogo e passou a trabalhar com as máquinas caça-níqueis. Terminou assassinado.
Terceiro
Antes da morte de Almir outras duas mortes já haviam manchado com sangue a fama de que o jogo do bicho no Paraná era “inofensivo”. De acordo com uma denúncia encaminhada às autoridades – com um alerta para que providências fossem tomadas antes que ocorresse uma matança no Estado -, em 1999, em Paranaguá, os pontos do bicho estavam sendo disputados pelos bicheiros conhecidos por “Japonês” e “Joel”, donos de casas lotéricas na cidade. Como também naquele ano começaram a entrar os caça-níqueis no litoral a disputa ficou acirrada. “Japonês” foi executado então, para deixar o caminho livre para seu concorrente, que tinha dívidas com os chefões da cooperativa. Com a morte de “Japonês” sua banca foi absorvida pela cooperativa.
A mesma denúncia revelava ainda que, no ano seguinte à morte de “Japonês”, um dos seguranças da cooperativa matou a tiros, dentro do estabelecimento, um homem ligado ao jogo do bicho que estava se desentendendo com um dos líderes. Tal crime, segundo o denunciante, não chegou sequer a motivar a abertura de inquérito policial e até hoje não foi investigado. A família do morto vive escondida.
Irmão de Almir pode ser solto
O comerciante Pedro Paulo Hladykyi Solarewicz, 54 anos (irmão do bicheiro Almir Solarewicz), que foi preso em 28 de agosto último, portando 506 moedas de R$ 1,00 falsas, poderá ser colocado em liberdade em breve. A informação é do advogado do comerciante, Peter Amaro de Souza que irá requerer a nulidade do inquérito por incompetência do juízo.
O defensor informou que o inquérito policial instaurado pela Delegacia de Furtos e Roubos foi enviado à Central de Inquérito e o juiz Marcelo Ferreira declinou que é incompetente para julgar o caso, já que a competência é da Justiça Federal. “A lei é clara: moeda falsa é crime de competência federal e não estadual. Como o procedimento foi incorreto e o próprio juiz entendeu isto, acredito que todos os procedimentos neste caso são nulos”, argumentou o advogado. “O juiz deveria ter revogado a prisão. Como não fez, vou argüir a nulidade”, acrescentou Peter.
Polícia
O delegado Gerson Machado, responsável pela prisão de Pedro Paulo, não acredita na possibilidade de ser declarada a nulidade do inquérito. “A minha parte foi feita. Entendo que o juiz declinou à Justiça Federal somente o crime da moeda falsa, mas também autuei o Pedro Paulo por estelionato e receptação, que são crimes que podem ser julgados pela Justiça Estadual”, salientou o policial.