Visão infeliz

No meio do furacão criado pelas denúncias de corrupção e favorecimento no mais importante programa da área social do governo – o Bolsa-Família – e do mal-estar criado pela divulgação de fotos inéditas do jornalista Wladimir Herzog, momentos antes de ele ser morto nos porões do DOI-Codi de São Paulo, em 1975, o presidente Lula teve que ouvir, no início da semana, a afirmação de que distribui verbas conforme a simpatia que tem com candidatos e projetos. “O presidente envia recursos quando tem sintonia com os objetivos daquele prefeito ou governador”, disse numa entrevista a atual prefeita Marta Suplicy, de São Paulo. Repreendida pelo Planalto, ela repetiu a dose no dia seguinte.

Trata-se de fato que, a princípio, deveria dizer respeito apenas aos paulistanos. Temos aqui, no Paraná, nossos próprios problemas e a disputa eleitoral travada no vizinho estado tem, naturalmente, menor importância que as nossas disputas. Mas o assunto encerra uma lição que não deve ser desperdiçada em benefício da obra permanente de construção da democracia, entre nós tão tênue a ponto de se ver ameaçada pela divulgação de fotos que pertencem à história (ocorridos há 29 anos na intimidade dos porões da ditadura já sepulta) e de sofrer arranhões com a eterna corrupção que envergonha a reputação dos homens públicos desde os mais remotos tempos.

É despicativo dizer que o presidente Lula não é o presidente dos brasileiros fiéis ao PT ou a qualquer outro partido político ou crença religiosa. Ele é o presidente constitucionalmente eleito de todos os brasileiros. Embora alguns gestos seus sugiram (o recebimento de prefeitos eleitos pelo partido da estrela, mal encerrada a refrega eleitoral, por exemplo) o comportamento estreito de agradar correligionários ou amigos, Lula tem o compromisso largo de agir com eqüidade, justiça e em atendimento aos estritos ditames da lei. Não pode ele sequer imaginar penalizar o povo de Curitiba – só para ilustrar – apenas porque o prefeito eleito pelos curitibanos seja alguém que eventualmente não reza pela sua cartilha. Ou melhor, pela cartilha do partido a que é filiado o presidente da República.

Abra-se um parêntese para dizer apenas que uma situação como a desenhada pelas insinuações de favorecimento a administradores correligionários (e conseqüentemente punição aos demais) por conta do erário público seria matéria-prima suficiente para a tecedura de vigoroso processo de impedimento, ou impeachment, presidencial. Não seus opositores, mas os próprios companheiros do presidente continuam a fornecer, entretanto, a lenha que eleva a temperatura das labaredas que circundam o poder central.

Não se perca tempo dizendo que de duas uma: ou a candidata destemperada molda o mundo à sua semelhança, e então estaria demonstrando seu despreparo para a função que ocupa e que pleiteia repetir, ou revela uma realidade existente que nem a oposição até aqui foi capaz de imaginar. Mas é sintomático que a reação do Planalto às destemperanças verbais da candidata à reeleição no principal colégio eleitoral do País tenha sido tão pífia. Menor do que se esperava, tanto na intensidade quanto no argumento, convinha que fosse enérgica e completa para desencorajar quem quer fosse de usar – como já se tentou alhures – o mesmo e surrado refrão, que diminui a autoridade do presidente da República a ponto de torná-la refém de intrigas e futricas, já não apenas de bastidores. E à mulher de César, já diziam os romanos, não bastam os predicados da honestidade; devem socorrê-la também aqueles indícios que a fazem parecer honesta.

A menos que a infeliz visão de Marta – talvez um pouco obnubilada pelo cansaço da longa disputa eleitoral – seja também um pouco a visão dos que ocupam o Planalto, seria importante que esse tipo de conversa fosse retirada definitivamente do vocabulário político. Antes mesmo que os eleitores ensinassem o que precisa ser feito com a única, mas certeira, arma de que dispõem – o voto.

Grupos de WhatsApp da Tribuna
Receba Notícias no seu WhatsApp!
Receba as notícias do seu bairro e do seu time pelo WhatsApp.
Participe dos Grupos da Tribuna
Voltar ao topo