O tema sobre a violência é muito sério e providências precisam ser tomadas com urgência. É necessário despir o povo dessa pavorosa e diuturna preocupação.
Há pouco mais de um ano o planeta foi abalado pelo ataque terrorista suicida em Nova York, deixando a população mundial assombrada e na expectativa da eclosão de uma possível 3.ª Guerra Mundial. Um evento chocante, sem dúvida. De uma violência brutal. Uma violência resultante de um choque de civilizações, de um choque de culturas diferentes.
A violência que aqui viemos tratar não é menos chocante nem menos brutal. É aquela praticada entre os componentes de uma mesma sociedade e teoricamente de mesma cultura. A preocupação geral, de pais e de filhos, de uns para com os outros, nas simples saídas de casa para o trabalho ou para o lazer. Os vidros fechados. O medo do assalto. A perda de bens e da própria vida se tentarmos reagir. O medo que chega ao interior de nossos lares. Me dediquei e ainda me dedico profissionalmente ao Direito Penal e ao Direito Processual Penal. Como membro do Ministério Público, juiz do Tribunal de Alçada, desembargador, professor de Direito Processual Penal e hoje, aos 86 anos, como conselheiro do Egrégio Conselho Penitenciário do Estado do Paraná, estou sempre a me preocupar com as soluções dos problemas afetos à violência e ao seu combate. Tudo que produzi tive o cuidado de enviar ao presidente da República, recebendo apenas um telegrama de seu gabinete agradecendo e comunicando o envio ao Ministério da Justiça para análise.
Estamos nos sentindo acuados, frágeis e completamente inseguros. Tanto nas ruas como em relação ao aparelho estatal, que exerce o poder de polícia e de justiça. Quando nos deparamos com a figura indecorosa e nojenta do chefe do tráfico, que me recuso a nominar, estampada na 1.ª página da revista de maior circulação nacional, temos certeza de que há uma terrível inversão de valores. Como se fosse um herói ou um grande ídolo nacional, servindo de exemplo aos nossos jovens e aos nossos trabalhadores mais simples, ou àqueles que estão desempregados, cuja possibilidade de acesso a essa mídia gratuita, de tanta expressão, é quase nula. São os veículos de comunicação que todos os dias nos trazem as façanhas desses infelizes. Não defendo de forma alguma a censura à imprensa, mas condeno veementemente o sensacionalismo em matéria criminal.
Vivemos a existência de um governo paralelo. De um pluralismo jurídico. O crime organizado, notadamente o tráfico ilícito de drogas e entorpecentes, substituindo o Estado no seu papel mais substantivo. A justiça do tráfico é rápida, quando julga e condena jornalistas, policiais e moradores das comunidades, como no último trágico exemplo do assassinato do jornalista Tim Lopes. O tráfico dá emprego na venda de drogas. Dá moradia, esporte e até atende a saúde das populações marginalizadas. O morador da favela tem mais medo da polícia que dos criminosos. O capital do crime está hoje a se espalhar e a minar os valores mais caros da sociedade. A corrupção é incontida. Diante da dimensão de tão grande problema, o Estado tem se colocado inerte a impotente, ano após ano.
Para o criminoso, o desejo da sociedade é a cadeia. O castigo necessário e proporcional ao dano causado, capaz de reeducá-lo e devolvê-lo regenerado para o convívio social. Porém a verdade precisa ser dita. O cárcere tem dois pesos e duas medidas; de um lado isola o criminoso, tirando-o do meio social, mas de outro coloca-o recolhido a uma grande escola de banditismo, passando assim o bom a ser mau. Exerce um efeito criminógeno sobre os indivíduos. Comete-se o erro de misturar laranjas boas ao meio de frutas podres. Não podemos continuar mantendo aquele que cometeu um crime hediondo com o indivíduo que por forte emoção cometeu um crime passional. O estuprador ou o latrocida com aquele que cometeu um pequeno furto para alimentar-se. O traficante de drogas com o usuário de drogas. O ladrão de galinhas junto com o ladrão de automóveis e assim por diante. Os administradores das unidades penais enfrentam grandes problemas, de difícil solução, como o tráfico ilegal, a promiscuidade, o sexo inseguro, as doenças infecto-contagiosas, a compra e venda de armas, a corrupção ativa e passiva e todo o tipo de ilícito imaginado. A penitenciária hoje funciona como se fosse escritório de bandido. É o lugar mais seguro para o criminoso perigoso se proteger e continuar em sua escalada. Dá hospedagem, roupa lavada, alimentação, banho, estrutura para a prática de esportes, tudo isso custeado pela sociedade. Mantém em funcionamento um verdadeiro aparato a serviço da criminalidade. É a sociedade financiando o crime. Lá de dentro planejam-se e ordenam-se, através dos celulares, os grandes seqüestros, assaltos, motins e rebeliões, além de outros crimes de grande impacto social. “O celular globalizou a vida do presídio”, dizia manchete da revista Veja do dia 28/2/2001. Precisamos acabar com esse risco, fazendo uma ruptura na estrutura do crime organizado.
O sistema penitenciário do Estado do Paraná, assim como o de outros estados da federação, possui diversas unidades penais espalhadas pelo seu território. É composto por unidades situadas nos municípios de Curitiba, Piraquara, Ponta Grossa, Londrina, Maringá, Guarapuava, Cascavel, Foz do Iguaçu, entre outros, capazes de receber todos os tipos de criminosos. De pronto deve ser implantado em todo o Brasil um serviço de triagem, rígido, rápido e capaz de surtir efeito imediato, sem grandes investimentos. Fazer uma classificação através do Juízo de Execuções Penais, de todos os condenados presos, por tipo de crime, se primário ou reincidente, pelo grau de periculosidade, analisando fatores tais como a personalidade, a vida pregressa e o comportamento carcerário de cada um, procedendo às trocas de uma para outra penitenciária, de um para outro pavilhão, de uma para outra cela, até que se consiga o completo saneamento, separando-se o joio do trigo. Paralelamente, se faz urgente a implementação de projetos de modernização e construção de novas unidades.
Outro aspecto a que dedico estudo, diz respeito ao ressarcimento do dano causado à vítima e sua família. Mais grave do que o crime propriamente são as conseqüências sociais deste Pela necessidade, muitas vezes, na família do réu e na família da vítima, a mulher é levada à prostituição e os filhos menores ao abandono nas ruas. O criminoso deve ressarcir o dano com o trabalho. Nas sentenças, deverá o juiz, por recomendação da Corregedoria Geral da Justiça, para qualquer tipo de crime, fixar o valor do dano, para que parte do resultado do trabalho do preso durante o cumprimento da pena reverta em favor da família da vítima, do Estado e conseqüentemente da sociedade. O governo, juntamente com a iniciativa privada, neste caso isenta dos encargos sociais, deve prover os estabelecimentos penais com ocupação remunerada para todos os presos, como já ocorre com a unidade penal de Guarapuava. Assim, poderá a vítima ser ressarcida do dano, o governo indenizado dos custos com o interno e a sociedade com a tranqüilidade de que os criminosos estarão sendo de fato reeducados.
As propostas que defendo para as políticas governamentais são aquelas que atacam as causas da violência. Decididamente não encontramos estas causas na legislação penal. O nosso ordenamento jurídico contém o que há de melhor no mundo em matéria de legislação penal. O problema da violência no Brasil é parte cultural, parte estrutural.
No aspecto cultural, basta que nos voltemos à nossa colonização, sob a forma de exploração, para que logo percebamos a origem da exclusão social. Só a nobres e burgueses era dado acesso à educação e demais serviços estatais substantivos. Essa exclusão social, que subsiste ainda hoje, é, no meu modo de entender, a causa principal a ser atacada. Esta causa só será combatida com educação, com saúde, com desenvolvimento econômico e com trabalho para todos. O desenvolvimento cultural é lento e cumulativo, necessitando que os governantes, atuais e futuros, o tenham como compromisso fundamental, juntamente com a iniciativa privada e com a sociedade como um todo.
No aspecto estrutural, que se imponha aos governos, como prioridade, a necessidade de redirecionar investimentos maciços para a reforma do sistema penitenciário e o reequipamento dos recursos materiais das polícias, em nível estadual e federal, como também o aumento, valorização e o treinamento dos recursos humanos, de forma que o aparelho do Estado volte a ser respeitado e exerça o seu poder de repressão. O Poder Judiciário deve merecer a mesma atenção. O crime de corrupção deve sofrer punição exemplar.
O governo que em 1.º de janeiro de 2003 assume não precisa criar, extinguir ou editar qualquer lei para consecução desses objetivos. A Constituição Federal, nossa norma jurídica maior, em seu art. 1.º, nos diz: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político. No art. 3.º, expressa: constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Traz também, em seu art. 5.º todo um rol de direitos e garantias individuais. No art. 6.º, fala: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. Em todo o texto constitucional nos deparamos com direitos do cidadão, direitos expressos em normas jurídicas integrantes da nossa lei maior e que devem ser atendidos, direitos que, por qualquer ângulo que olhemos constituem-se em estandartes de combate às causas da violência. Direitos subjetivos que devem ser materializados e objetivados, tendo à frente a proteção da dignidade da pessoa humana, sob a mais estrita legalidade e moralidade. O tema da violência poderia ser abordado por inúmeras variantes, mas esperamos que o governo democrático que está por assumir dê oportunidades ao povo para manifestar o seu desejo, elegendo as prioridades que devam ser implementadas.
Concluindo, posso afirmar, a família que tem trabalho, moradia, alimentação, educação, boa saúde, segurança e acesso à justiça, não terá, salvo vítimas de patologias, qualquer de seus membros se voltando para a criminalidade.