É bem provável que nunca vamos conseguir, no Brasil, números exatos sobre esse tipo de violência. Mas não há nenhuma dúvida que as crianças brasileiras – de todas as classes sociais: pobres, médias, ricas – são vítimas frequentes de violência desencadeada pelos pais.
Pesquisa realizada pela pediatra Anna Tereza Miranda, da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), de janeiro a março de 2005, constatou o seguinte: 94,8% das pessoas entrevistadas (524 pessoas) admitiram violência psicológica contra os filhos (xingamentos, ameaças etc.); 52,3% reconheceram situações de negligência diante dos filhos; 38,7% confessaram maus-tratos físicos contra crianças.
E quantos desses casos foram notificados ao Conselho Tutelar das crianças? Menos de 1%. A subnotificação, como se vê, é muito grande (O Estado de S. Paulo de 17 de fevereiro de 2009, p. C1).
Quem pratica violência contra as crianças? Em 228.443 casos a mãe; em 198.614 casos o pai (O Estado de S. Paulo de 17 de fevereiro de 2009, p. C1). As mulheres, que são vítimas de violência do marido (a cada 15 segundos uma mulher é agredida no Brasil), reproduzem essa mesma agressão contra seus filhos.
Qual classe social mais denuncia? A pobre (raramente é divulgado um caso de violência familiar em classe média ou alta). Neste âmbito vale a lei do silêncio. Todas as classes sociais são violentas contra as crianças. Mas a que mais aparece é a violência das classes baixas.
Apesar de todas as polêmicas e da gravidade do problema, ainda é grande o número de pessoas que toleram a violência doméstica contra as crianças. Desde que não extrapolem certos limites (uma palmada nas nádegas da criança, v.g.), a lei penal brasileira (Código Penal, artigo 136) admite a violência contra de crianças. Olha o que diz a lei: só existe o crime do artigo 136 (maus-tratos contra as crianças) quando houver “abuso dos meios de correção ou disciplina”. Quando houver “abuso”, ou seja, o uso é admitido (penalmente). Só o abuso é criminoso.
Do ponto de vista jurídico a discussão toda passa pelo seguinte: agressões não tão relevantes (dos pais contra suas crianças) estariam amparadas pelo direito vigente? Seriam exercício regular de um direito?
A clássica jurisprudência brasileira, com base na lei vigente, sempre admitiu uma certa margem de violência empregada pelos pais. Para a tipificação do crime, ela diz, não basta o uso de meios de correção, pois é necessário que tenha havido abuso deles, capaz de expor a perigo a vida ou a saúde da vítima (RT 587/331). Configura o delito a punição exagerada, o corretivo imoderado ou abusivo RT 788/615. Na correção, só é punível o abuso de que resulte perigo para a saúde ou para a vida.
Claro que definir o que é uso de um lado e abuso de outro é uma questão bastante complicada. De qualquer maneira, a polêmica vai muito além disso. Nos dias atuais ainda continua sendo concebível a agressão física contra um filho?
O tema está ficando cada vez mais problemático: a clássica afirmação da lei, da doutrina e da jurisprudência brasileiras (de que é tolerável um certo nível de violência no âmbito doméstico) está se tornando a cada dia mais questionável. Considerando-se que o direito não perde nunca sua “referenciabilidade social”, claro que uma mesma norma acaba sendo interpretada de forma diferente conforme cada época.
O que está em jogo é o princípio da adequação social (o risco criado, portanto, seria tolerado, aceito – leia-se: tratar-se-ia de risco permitido). Em hipótese alguma se tolera o abuso, o excesso, a falta de razoabilidade. Mesmo para os que toleram a violência doméstica contra as crianças, uma coisa é um leve tapa nas nádegas e outra muito distinta é uma surra que deixa a vítima quase falecida.
A tendência clara mundial consiste em restringir cada vez mais a possibilidade de agressões físicas. A política de tolerância zero já,; está começando a se impor no mundo todo. Com isso vamos eliminando a animalidade, para priorizar a humanidade.
Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito pela Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, professor de Direito penal na Universidade Anhangüera e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG (www.lfg.com.br). Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001).