O antológico voto do ministro Celso de Mello, lido no dia 12 de março de 2008 no Pleno do STF (Supremo Tribunal Federal), no HC 87.585-TO e RE 466.343-SP, ao reconhecer o valor constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos, nos faz retornar a este tema (que já cuidamos no GOMES, L.F., Estado constitucional de direito e a nova pirâmide jurídica, São Paulo: Premier, 2008, p. 30 e ss.).
Há muita polêmica sobre o status normativo (nível hierárquico) do DIDH (Direito Internacional dos Direitos Humanos) no direito interno brasileiro.
Uma primeira corrente que deve ser lembrada sustentava a supraconstitucionalidade do DIDH (Celso D. de Albuquerque Mello, citado por MENDES, Gilmar Ferreira et alii, Curso de Direito constitucional, São Paulo: Saraiva, 2007, p. 654).
Um forte setor da doutrina (Flávia Piovesan, Antonio Cançado Trindade, etc) sustenta a tese de que os tratados de direitos humanos (Convenção Americana de Direitos Humanos, Pacto Internacional de Direitos civis e políticos etc.) contariam com status constitucional, por força do artigo 5.º, parágrafo 2.º, da Constituição Federal (?Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte?).
Nesse mesmo sentido: Sylvia Steiner, A convenção americana, São Paulo: RT, 2000. Em consonância com essa linha de pensamento há, inclusive, algumas decisões do STF (HC 72.131 e 82.424, rel. Min. Carlos Velloso), mas é certo que essa tese nunca foi (antes de 2006) majoritária na nossa Suprema Corte de Justiça.
O STF, de acordo com sua tradicional jurisprudência, a partir da década de 70 emprestou aos tratados, incluindo-se os de direitos humanos, o valor de direito ordinário (RE 80.004-SE, rel. Min. Cunha Peixoto, j. 1/6/77).
Durante anos ficou consagrada a corrente paritária: tratado internacional vale tanto quanto a lei ordinária. Esse entendimento foi reiterado pelo STF mesmo após o advento da Constituição de 1988 (STF, HC 72.131-RJ, Adin 1.480-3-DF).
A Emenda Constitucional n.º 45/2004 (Reforma do Judiciário) autoriza que eles tenham status de Emenda Constitucional, desde que seguido o procedimento contemplado no parágrafo 3.º do artigo 5.º da Constituição Federal (votação de três quintos, em dois turnos em cada casa legislativa): ?Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais?.
De acordo com voto proferido pelo ministro Gilmar Mendes no RE 466.343-SP, rel. Min. Cezar Peluso, j. 22/11/06, ainda não concluído, tais tratados contariam com status de direito supralegal (estão acima das leis ordinárias mas abaixo da Constituição).
Nesse sentido: Constituição Federal da Alemanha (artigo 25), Constituição francesa (artigo 55) e Constituição da Grécia (artigo 28). Além do ministro Gilmar Mendes, já votaram no sentido da inconstitucionalidade da prisão civil do depositário infiel (no caso de alienação fiduciária) Cezar Peluso, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Carlos Britto e Marco Aurélio.
O voto do ministro Celso de Mello (proferido no HC 87.585-TO assim como no RE 466.343-SP, no dia 12/3/08) evoluiu um pouco mais: reconhece o status constitucional do DIDH. Com isso ele se afastou do seu antigo posicionamento (Adin 1.480-DF), para garantir ao DIDH o seu devido valor.
Conseqüência prática: todas as normas legais que conflitam com esses tratados (por exemplo: normas que prevêem a prisão civil do depositário infiel) perderam (ou não terão) eficácia (validade).
Convém salientar que nesse ponto as duas posições divergentes (da supralegalidade dos tratados, sustentada pelo ministro Gilmar Mendes, e da constitucionalidade, defendida pelo ministro Celso de Mello) são convergentes. Conduzem a um mesmo resultado (no plano jurídico): os tratados valem mais que a lei ordinária (e retiram-lhe a validade, quando o direito inferior conflita com o superior).
Sintetizando: diante de tudo quanto foi exposto podemos afirmar que os tratados de direitos humanos podem ser (ou são) incorporados no direito interno brasileiro: (a) como Emenda Constitucional (CF, artigo 5.º, parágrafo 3.º) ou (b) como Direito constitucional (posição doutrinária fundada no artigo 5.º, parágrafo 2.º, da CF e, agora, ratificada pelo ministro Celso de Mello HC 87.585) ou (c) como Direito supralegal (voto do ministro Gilmar Mendes no RE 466.343-SP).
As provectas teses que afirmam o valor (a) supraconstitucional ou (b) meramente legal (tese da paridade), defendida pela antiga jurisprudência do STF, perderam completamente a atualidade.
Conclusão: os tratados de direitos humanos valem mais que a lei ordinária. Ocupam posição (hierárquica) superior. É supralegal (Gilmar Mendes) ou constitucional (Celso de Mello).
Efeito prático: quando o direito ordinário conflita com tais tratados, não vale (não possui validade). Não se trata de ?revogação? do direito inferior (interno), que continua ?vigente?. Vigente mas não vale (é do plano da validade que se trata). Vigência e validade são coisas distintas (Ferrajoli). Nem toda lei vigente é válida. Só será válida quando compatível com a Constituição e o DIDH (dupla compatibilidade vertical) (GOMES, L.F., Estado constitucional de direito e a nova pirâmide jurídica, São Paulo: Premier, 2008, p. 73 e ss.).
Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, secretário-geral do Ipan – Instituto Panamericano de Política Criminal, consultor e parecerista, fundador e presidente da Rede LFG Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (1.ª Rede de Ensino Telepresencial do Brasil e da América Latina – Líder Mundial em Cursos Preparatórios Telepresenciais – www.lfg.com.br