São muitos os frutos da árvore do imaginário (inclusive a imagem da árvore). Em maior número e incontáveis são os recursos de que se serve a mente humana para transformar em imagens-frutos todo o complexo universo dessa parte essencial de nossa psiquê. Desses frutos, um dos mais apreciados pela coloração, sabor e aroma é a literatura.
É estatisticamente marcante a quantidade de respostas de professores à pergunta ?Para quê serve a literatura?? formuladas como ?Serve para alimentar/desenvolver o imaginário.? É como se a pergunta detonasse mecanicamente essa sentença previamente armazenada na memória.
Mesmo sem entender muito bem como funciona a relação literatura-imaginário, os docentes acertam na finalidade, concebendo um elo entre imaginário e criatividade. Vão mais longe e, com a autoridade da experiência profissional, afirmam que a criança é muito mais criativa do que o adulto.
No livro As estruturas antropológicas do imaginário, Gilbert Durand afirma que ?a passagem da vida mental da criança ou do primitivo para o adultocentrismo é um estreitamento, um recalcamento progressivo do sentido das metáforas?, entendidas estas como figuras de linguagem capazes de concretizar, de maneira simbólica, nossos pensamentos mais complexos.
No adulto, os sapos representam salários baixos, a angústia do medo, a ansiedade e depressão decorrentes da vida urbana e da submissão ao mercado, o temor nutrido pela vida em sociedade. Mas não desapareceu da idade adulta a expectativa do encontro com o Príncipe, venha ele ao volante de uma potente Ferrari ou dirigindo um modesto modelo nacional, comprado em elásticas prestações. Nossos príncipes adultos estão na Mega-Sena, no/na top model da estação, no apartamento de luxo, na viagem ao paraíso caribenho. Trocamos as clássicas metáforas do Bem e do Mal para o novo código capitalista, repleto de símbolos de ter e poder. Nosso imaginário não se estreitou, metamorfoseou-se, isto sim, em carnalidade, objetividade, bem estar e sobrevivência. As bruxas adultas fantasiam-se de Morte, usam o tridente da fome, vestem os andrajos da violência e carregam na mão a valise dos papéis e documentos, estes, sim, luciferina criação do espírito humano.
Estreitamos nossa mente na busca de metáforas de primeiro grau, aquelas de que se servem os maus poetas para rechearem seu texto prosaico. Já a criança, ainda não totalmente dominada por essa opressiva objetividade, se permite, assim como os povos primitivos, imaginar outros e possíveis mundos. E, para tanto, metaforiza, cria analogias de profunda beleza e sedutor encanto. Por essa razão, a literatura para qualquer idade tenta recuperar toda a infância das palavras a fim de criar possibilidades de beleza, como o fizeram os simbolistas, os surrealistas, os que trabalham com o absurdo e o lirismo sem receitas.
Essa diferença entre imaginários justifica, quase sempre, porque a literatura infantil, escrita por adultos, gera textos utilitaristas, pedagógicos, sermonísticos.
Ganhei de uma amiga, Rossana Uba, uma miniatura representando um storyteller nosso conhecido contador de histórias impossível de definir visualmente se homem ou mulher. É um símbolo cativante: uma figura humana que, ao tocar a flauta atrai crianças que se instalam, natural e comodamente, em todo seu corpo: braços, pernas, mãos, colo e cabeça. E a figura humana se multiplica, agrega-se, ornamenta-se de humanidade. E, maravilha das maravilhas, seu semblante é de profunda concentração, paz e recolhimento, como se o imaginário estivesse em plena criação e, por isso mesmo, capaz de conquistar, seduzir, dar sentido à humanidade. A figura veio da Califórnia e representa um mito indígena de contação de histórias.
Quando respondemos, um tanto automaticamente, que a literatura tem a ver com o imaginário, estamos conscientes de quanto essa relação fala realmente da humanidade? Pensamos apenas em bichos falando e representando todos os nossos defeitos? Falamos de sonhos previsíveis, de medos realistas, encarnados em bruxas e madrastas? Não estamos dimensionando em medida adulta uma imensurável capacidade de alegoria e simbolização que ultrapassa interpretações utilitárias? Não estamos usando a literatura apenas como uma tradução daquilo que a razão, por si mesma, dá conta? Não estamos considerando literário um sentido apenas ornamental, de enfeite, para a lógica e os argumentos racionais?
O Coelho de Alice é apenas um animal engraçado em seu comportamento histérico? A Rainha de Cartas apenas uma analogia do poder político e terreno? Em que medida Lewis Carroll, o criador, entre outros livros, de Alice no país das maravilhas, estava dando forma a pensamentos e associações, de que não conhecia a extensão e a expressividade?
Manoel de Barros, o poeta do Pantanal, citando seu avô, escreveu: ?Os andarilhos, as crianças e os passarinhos têm o dom de ser poesia.?
Verdade e síntese, desde que os três não estejam engaiolados e impedidos de vagar.