A discussão sobre o uso de documento falso (como ocorre com demais temas afetos ao direito) não é estanque. Não se pode limitar a um caso específico. Por este viés, apresentamos questionamento sobre a melhor tipificação a ser dada quando do uso de certificados de conclusão de 2.º grau ou históricos escolares correspondentes, em tese falsos, para a obtenção de alguma vantagem, como por exemplo, ingressar em universidades ou conseguir colocação no mercado de trabalho.

São inúmeros os casos, nesta capital, investigados pela Delegacia de Crimes Contra a Administração Pública, referentes ao uso de documentos falsos, mais especificamente de diplomas de 2.º grau ou históricos escolares falsificados, na forma acima.

Por hábito, todos esses casos têm recebido, para fins de realização de inquérito policial, tipificação inicial na forma prevista no artigo 304 combinado com o artigo 297 do Código Penal, qual seja: Uso de documento público falso (o que se verifica pela combinação do artigo pré-citado com o artigo 297, do mesmo código, que prevê a quem falsifique o documento público, pena de reclusão de dois a seis anos).

Isto ocorre pois a pena em abstrato para quem usa o documento falsificado é a mesma prevista para quem o falsifica, vez que o artigo 304 do Código Penal é norma penal em branco, que se completa em função da falsificação do documento. Se o documento falsificado usado for particular, por exemplo, a pena em abstrato prevista é de reclusão de um a cinco anos e multa (pela combinação dos artigos 304 e 298 do mesmo código).

Da leitura, no entanto, do artigo 301 § 1.º do mesmo diploma legal, percebe-se outro tipo penal que, também em tese, pode ser aplicado à grande parte dos casos até o presente analisados, qual seja: falsidade material de atestado ou certidão, cuja pena prevista é de detenção de três meses a dois anos, ocorrente quando o documento falsificado não tiver natureza de documento público.

Sobre o tema, já decidiu o STF, e a doutrina em parte o acompanha, no sentido de que sujeito ativo desta figura típica (301, § 1.º CP) pode ser qualquer pessoa, inclusive o beneficiário da “vantagem a ser obtida”. Neste sentido também o STJ (RT 745/534) e o RJTJESP (RT 120/539).

Portanto, correta a imputação desta figura típica à pessoa que não ostente a qualidade de funcionário público.

Pode-se questionar se a vantagem acima aludida refere-se obrigatoriamente à vantagem de caráter público ou não. Se mostra mais coerente a interpretação literal e também in bonan partem, que ao admitir que o termo “qualquer vantagem” seja entendido no sentido amplo emprestado pelo vernáculo, incluindo também, mas não só, aquela em que dano concreto é de natureza pública. Neste sentido manifestou-se, por exemplo o TJSP (RT492/315; 492/315 e 472/238).

Verificada a falsificação de atestado ou certidão (histórico escolar, diploma de primeiro ou segundo grau – RT 492/315, que para uns não tem natureza de documento público – RT 715/435) com o fim de obter qualquer vantagem (emprego, promoção, freqüentar curso superior, para fornecer alguns exemplos), entendemos, pela possibilidade de haver beneficio em favor do autor do delito, que a conduta deverá ser tipificada na forma mais garantista, qual seja, aquela que prevê em tese pena mais branda. No caso em apreço, a da combinação do artigo 304 (uso de documento falso) com § 1.º do artigo 301 (falsidade material de atestado ou certidão) e não do artigo 304 (uso de documento falso) com o 297 (falsificação de documento público) todos do Código Penal.

Desta tipificação podem também ser extraídos outros resultados, além daquele pertinente à pena em abstrato prevista. Por exemplo, o prazo em que se atingirá a prescrição da pretensão punitiva do Estado: 4 (quatro) anos para a primeira adequação típica, enquanto que para a segunda, 12 (doze), na forma dos artigos 107 e seguintes do Código Penal).

Quanto ao procedimento judicial, dependendo da interpretação utilizada para concreção do fato à norma, também se operam diferenças que não podem ser negligenciadas, vez que ora será o procedimento regido pela Lei dos Juizados Especiais, com a realização de termo circunstanciado, face à ampliação dos limites de abrangência na esfera penal da Lei 9.099/95, introduzidos pela Lei 10.259/01 (que instituiu os Juizados Especiais Federais), com conseqüente possibilidade de suspensão condicional do processo, de transação penal, aplicação de penas alternativas e procedimento mais célere, que ao final poderá nem mesmo operar para fins de reincidência criminal. Ou então, se optado pela adequação da conduta à norma prevista no artigo 304 c/c 297, ter-se-á apuração iniciada por inquérito policial, seguido de processo judicial (ação penal), possibilidade de cumprimento de pena no sistema prisional, registros para fins de reincidência penal, anos de idas e vindas à justiça, para citar alguns caracteres.

Ainda que na doutrina e na jurisprudência pátrias possamos encontrar divergências sobre a melhor interpretação da lei quando confrontada ao fato concreto, cremos que possibilitar a inserção no sistema penal, de pessoa que tenha falsificado ou usado documento falso para fins de obter vantagem, a exemplo, conseguir emprego ou freqüentar curso superior, propondo-lhe pena de reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos, além de não possibilitar qualquer pretendida recuperação, é desproporcional ao delito praticado (a pena em tese prevista para caso de lesão corporal de natureza grave, é de reclusão de 1 a 5 anos, a pena em tese prevista para autores de furto, é de reclusão de 1 a 4 anos, ou ainda, a pena em abstrato prevista para corrupção de menores, é de reclusão de 1 a 4 anos), mormente havendo a possibilidade de aplicação também de pena, de forma mais célere, menos desproporcional e quiçá, mais educativa e recuperadora, sem as mazelas que a pena de reclusão possa acarretar, notadamente pela falência de nosso sistema carcerário.

Por fim, para encerrar, se o mesmo delito for praticado, agora, por funcionário público, será apenado na forma do caput do artigo 301, cuja pena em abstrato é de detenção de 2 (dois) meses a 1 (um) ano. Ora, incoerente admitir interpretação do texto legal no sentido de prejudicar o autor (de mesma conduta), quando ele não for funcionário público, ou quando a vantagem que visar não for de caráter público. Ao contrário, deveria ser beneficiado, pois dele não se espera a probidade administrativa. Fato que corrobora a idéia de estarmos trilhando rumo à melhor interpretação dos dispositivos legais em análise

A idéia neste breve comentário, bem como seu fator motivador, é criar o debate sobre o tema, o que se justifica, desde logo, pela necessidade de imprimir à aplicação do direito penal, tanto razoabilidade e proporcionalidade quanto possível, a fim de adequá-lo aos princípios constitucionais vigentes desde 1988.

Luís Fernando Viana Artigas Jr é delegado de Polícia-adjunto da Delegacia de Crimes Contra a Administração Pública; pós-graduando em Ciências Penais pela PUC PR; formado pela École Nationale Supérieure de la Police – ENSP, França e pelo United Nations Asia and Far East Institute for Crime Prevention and the Treatment of Offenders – Unafei, Japão.

Marcelo Nogueira Artigas é advogado; professor e vice-coordenador do Núcleo de Prática Jurídica da UTP; pós-graduando em Ciências Penais pela PUC-PR. E-mail:

marcelo.artigas@utp.br
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