?Se quero participar? Ô meu, tô nessa!? eu disse, os olhos a saltar de curiosidade. Nem bem a professora Bia terminara o convite, eu já mostrava o quanto me interessava integrar o grupo dos alunos que iria visitar algumas casas do bairro para conhecer e entrevistar pessoas importantes, que se destacavam das demais.
A atividade fazia parte das aulas de uma tal de Associologia, uma matéria que até aquele momento era meio misteriosa pra mim. Mas a professora sabia inventar umas brincadeiras e tarefas que tiravam os alunos da sala, e faziam com que eles se envolvessem mais com a escola e as pessoas. Ele sabia que quem estudava Associologia virava um tal de associólogo. Lembrava vagamente de ter ouvido sobre essa profissão no noticiário da televisão, toda vez que eram entrevistadas pessoas para falar de acontecimentos ruins, de problemas e crises na cidade. Essas pessoas se punham a falar, a falar. Eu não entendia aquele blábláblá sem fim. Principalmente porque eu sou um menino de poucas palavras. Pra que falar muito se posso ser entendido com pouco?
?Quando vamos??. Assim mesmo, sem dizer professora, ou Bia, ou dona.
?Vamos na semana que vem?, respondeu Bia. ?Precisamos combinar algumas perguntas, ver o que queremos obter e definir como fazer?. Nisso ela era muito boa: projetar, prever, estabelecer normas e limites. Nós quatro, escolhidos para a pesquisa estávamos totalmente atentos. Além de mim, ia o Marco, o Tom (seu nome era Antônio, que ele achava muito antigo) e o Beléu (ninguém sabia o porquê do apelido, o nome era Luís Carlos. Nada a ver.).
Os dias demoraram a passar. No meio de tudo, umas provas de Ciências e Matemática para derrubar até mesmo um aluno estudioso como o Marco. Eu tinha certeza que ia precisar de umas aulas com a Dona Cinira, pra um reforço, como no ano passado. Mas a quarta-feira marcada pra tal pesquisa chegou enfim. Cadernos para anotações, um lanche na mochila, uma garrafa de água mineral, boné e muita ansiedade, lá fomos todos em direção à rua Prefeito Amaro, para a primeira visita.
?Vão entrando. Não reparem na bagunça e na pobreza. A gente tá tentando recuperar o que a enchente estragou?. Na nossa frente e da professora Bia estava uma velha de olhos doces e mãos macias, que nos recebeu com um sorriso. Nos levou até um quartinho dos fundos da casa, iluminado por uma grande janela com poucos vidros inteiros, uma velha máquina de costura, uma almofada com umas bolotas de madeira (a velhinha explicou depois que se chamavam bilros), muitas lãs e fios, e uma cesta meio acabada com várias peças de renda, bordados e crochês. A dona da casa justificou seu trabalho: ?Eu faço o papel da aranha, encho o ar com fios e desenhos?. A professora Bia gostou do jeito bonito que ela falou e explicou para nós que D. Clementina cantava enquanto fazia seu trabalho. E eram músicas que ninguém mais costumava ouvir, ou cantar, vindas o tempo dos tataravôs, que ela aprendera ainda criança. Para demonstrar, D. Clementina sentou-se numa cadeira de encosto alto (ela explicou que evitava assim dores na espinha). ?Espinha??, perguntou Tom. Bia explicou: ?Antigamente era assim que as pessoas falavam da coluna cervical?. ?Ah, agora entendi?, o menino sorriu.
A velha começou a trançar mais rápido do que os olhos podiam acompanhar e a cantar umas palavras bonitas, de som mais suave do que as que eu estava acostumado a ouvir. Nada de rock pauleira; pareciam cantigas de ninar. O quartinho foi enchendo de música. Reparei que Beléu sentou no chão e encostou a cabeça e ficou como que a imaginar. Me pareceu que Tom estava com os olhos molhados. Eu sentia vir de muito longe uma lembrança que não consegui definir. (Quando contei a visita pro meu pai, ele disse que minha bisavó cantava também umas músicas antigas, bonitas como poucas. Será que eu já conhecia e tinha guardado lá no fundo da memória?).
A gente estava meio emocionado. A luz da tarde entrava pela janela e os raios do sol se projetavam no assoalho e milhões de coisas pequenas dançavam ao vento. A professora Bia explicou depois que eram ?partículas de pó?. Achei um nome muito exagerado para uma beleza tão minúscula.
O melhor, depois daquela sessão de mãos e voz trabalhando, foi o convite pra gente ir até a cozinha. Um cheirinho bom de pão assado e uma tigela de bolinhos cobertos de açúcar nos esperava. Enquanto D. Clementina passava o café, com água fervida no fogão à lenha, ia contando sua história de vida. Mas não era uma história assim corrida, não. No meio ela ia contando outras histórias, de sua família, de assombração, de milagres de santos, causos da cidade com gente que agora era nome de rua, e muito mais.
Nem deu pra perceber que a tarde estava terminando. Por nós, a gente ficava lá um dia atrás do outro. Só vendo e ouvindo. Foi um custo para a professora Bia nos levar de volta pra escola. Também não sei como a gente chegou lá. Nós quatro estávamos com a sensação de que aprendemos mais com aquela mulher tão simples e pequena do que com muita gente graúda e cheia de doutor no nome.
Tenho pensado muito na tal Associologia: será que ela quer dizer que somos sócios na vida? Que a gente pode ficar ligado pra sempre no encanto e no aprender, ouvindo contar e cantar a vida de outras pessoas? Então D. Clementina, seus bolinhos, suas rendas, suas canções, escondida lá na Rua Prefeito Amaro, é professora de associologia da arte de encantar.