Uma contravenção na berlinda

É comum acontecer que o cidadão, ao pretender ingressar em repartição pública ou empresa particular, ter sua entrada barrada, com a exigência da entrega da cédula de identidade, ou carteira de identidade, ambas conhecidas como RG (Registro Geral). Em muitos casos, o documento de identificação é retido e devolvido somente após, com a saída de seu titular.

Apesar da cautela sempre exigida em razão da comprovada insegurança que impera e que exige medidas de garantias compatíveis com o bem estar coletivo, a retenção do documento de identidade, depois de cumprida a finalidade, constitui constrangimento ao cidadão e tal ato configura Contravenção Penal disposta na Lei 5.553, de 06 de dezembro de 1968, que, apesar da data avançada,  não foi revogada.

A identidade do indivíduo é o documento que o acompanha e representa a extensão de sua cidadania. É a forma pela qual se distingue uma pessoa de seu grupo social. Todo cidadão tem o direito de ter sua identidade civil. A lei define que o Registro de Identidade Civil é o ato pelo qual o cidadão brasileiro nato ou naturalizado, será identificado em todas as suas relações com a sociedade e com os organismos governamentais e privados (Lei 9.454, de 07/4/97).

Já houve tempo em nosso país, que o principal documento era a carteira de trabalho, devidamente anotada. O seu porte trazia a qualificação e o trabalho lícito, esse último fator impeditivo para considerar o empregado como contraventor de vadiagem. Hoje, é lógico, em razão do comércio informal e a carência de emprego efetivo, nem pensar em ressuscitar a cansada carteira de trabalho, para essa finalidade.

Assim é que, feitas as anotações necessárias pelo responsável pela empresa pública ou privada, a carteira de identidade deverá ser devolvida imediatamente e liberado o acesso ao seu portador. A retenção indevida causa transtorno e constrangimento ao titular da identidade. E a lei é bem clara quando prevê que o responsável pela prática contravencional é quem ordenou o ato que ensejou a retenção, salvo se o executor tenha desobedecido ou inobservado a ordem recebida, caso em que será ele o infrator.

A ausência do documento de identidade, ou a recusa em fornecer elementos necessários ao esclarecimento da identidade do suspeito, pode acarretar até a decretação da prisão temporária. Mas, mesmo que o cidadão tenha praticado qualquer crime, jamais perderá o direito ao uso legítimo do documento oficial. Até em casos de perda de cidadania, o indivíduo terá o direito de obter documento de identidade que seja condizente com sua situação. A retenção de documento oficial só poderá ser feita por ordem judicial, em casos especialíssimos, com a fundamentação necessária.

Quem se considerar ofendido em seu direito, poderá procurar pela Autoridade Policial e levar o conhecimento da prática contravencional, que será apurada obrigatoriamente, de ofício. Não é justo que o cidadão tenha seu documento retido por determinação da empresa ou ordem de serviço de autoridade pública. Ambas são hierarquicamente inferiores à lei em vigor.

O cidadão deve obediência à lei, mas não pode ser submetido a ilegais exigências e a caprichos desmedidos, que firam suas prerrogativas. Cada um traz em seu corpo nanico a grandeza existente no ser humano, já devidamente catalogado pelo Estado com a sigla RG. Num futuro próximo, será através de chip. Cidadão chip. Aí fica chique.

Eudes Quintino de Oliveira Júnior é Promotor de Justiça aposentado SP. Mestre em Direito Público. Doutor em Ciências da Saúde. Doutorando em Direito público. Pós-doutorando em Ciências da Saúde. Reitor do Centro Universitário do Norte Paulista. Advogado. Professor de Processo Penal, biodireito e bioética.

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