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Marta Morais da Costa (UFPR/PUCPR)

Em 2005, as comemorações do bicentenário de nascimento de Hans Christian Andersen (1805-1875) vão acontecer em várias regiões do planeta literário – ou do mundo interessado em literatura. Mesmo no controvertido desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro, a memória do escritor esteve na boca de milhares de atores, figurantes, público e espectadores da Imperatriz Leopoldinense.

No enredo intitulado Uma delirante confusão fabulística, a carnavalesca Rosa Magalhães aliou o escritor dinamarquês ao extraordinário brasileiro Monteiro Lobato -que não só traduziu contos de Andersen, como também colocou no Sítio do pica-pau-amarelo algumas de suas marcantes personagens. E os compositores do samba-enredo, em atendimento ao clima desse enredo, tomaram como mote na letra da música a expressão "Era uma vez…".

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Todos nós conhecemos o poderio dessas palavras, que abrem o universo indescritível e incontrolável do imaginário, provocando entre falantes e ouvintes o surgimento de invisível fio e de um contrato de cumplicidade. "Era uma vez…" lança contador e leitor/ouvinte no desenrolar e desenvolver de narrativas, aparentemente descompromissadas com a realidade.

De acordo com o samba da Imperatriz Leopoldinense, para "viajar nessa história/ é só dizer pirlimpimpim". A expressão, o dito é a chave que abre a porta do imaginário. Mas é preciso que um processo mais complexo se instale para que essas palavras, que criaram o mundo possível, possam oferecer também consistência e credibilidade à narrativa.

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Mikhail Tchekóv, sobrinho do grande dramaturgo e contista russo Anton Tchekóv, escreveu: "A matéria prima da imaginação é sempre tirada da vida". Nessa direção caminha a letra do samba quando associa o escritor à obra nos versos "E o menino venceu a pobreza/ E fez da arte a linda princesa/ Com quem viveu grande amor". Vida e arte, realidade e imaginação se unem na obra resultante, por isso é possível interpretar um de seus contos mais conhecidos – "O patinho feio" – como a universal metáfora da exclusão e da busca da aceitação e da identidade, vividas em tempo real pelo escritor. Mas quantos Andersen seriam necessários para justificar seus 156 contos? É porque a vida deve entendida não só enquanto biografia, mas também enquanto herança do imaginário cultural e, nesse aspecto, diz o próprio Andersen na autobiografia, intitulada O conto de fadas de minha vida, que suas criações vinham das histórias inventadas por seu pai, sapateiro, e da imensa herança de narrativas populares, de que era depositário. Assim, segundo Pellison, Andersen narrava a partir de parâmetros aprendidos ao vivo nas narrativas populares, em que se associam a credulidade, a simplicidade, a bondade cordial e a alegria ingênua. Andersen define sua obra Eventyr como "seu presente para o mundo", confirmando mais uma vez a intermediação do artista entre a herança recebida e a deixada a seus pósteros.

O quanto pode a arte, servindo-se do imaginário, fazer para tornar-se um legado, para ser a herança de um excluído e estar destinada a promover a compreensão e o encontro de culturas em terras, línguas e formações imaginárias tão diversas? Que poder têm o escrito, a fabulação e a simbolização para sobreviverem em terras e tempos tão diferentes, como os séculos XIX e XXI? Em línguas tão distantes como o dinamarquês e o português? Nas culturas nórdica e tropical? No ritmo pausado da narrativa e no verso cadenciado do samba e da dança erotizada do carnaval?

A homenagem brasileira ao bicentenário de nascimento de Andersen ainda não incluiu, no entanto, a honraria da publicação integral de todos os seus contos. Vale no samba e no espetáculo do desfile a lembrança do aniversário, mas, e o livro, quanto demorará? Cantamos e dançamos, mas não lemos.

Coincidentemente, chega-me às mãos um exemplar comemorativo dos 25 anos de publicação de Apenas um curumim, de Werner Zotz, em 25.ª edição pela Editora Letras Brasileiras.

Também ela é uma narrativa sobre um processo de exclusão: o do índio expulso de sua natureza natal, de sua cultura, da companhia de seu povo. No diálogo entre o pajé Tamãi e o menino, que, embora índio, não conhece os valores e a cultura de seu povo, Werner Zotz construiu a simbólica narrativa do tempo que enlaça as gerações e preserva o conhecimento da vida. Na lição do velho índio, o curumim vai encontrar o sentido da liberdade, do conhecimento das raízes culturais. Vai viver a transformação nascida do assumir-se enquanto diferença e identidade, do incluir-se em uma comunidade com novos/antigos valores de integração, solidariedade, harmonia e beleza. A transformação do renegado pato em gracioso cisne.

Duas comemorações, dois narradores a afirmar a ligação entre o imaginário e a vida, dois exemplos de obras a consolidarem a força da tradição, depurada, visando à aplicação fecunda num outro tempo. O pó de pirlimpimpim não aliena nem ilude: nos faz ir à procura e ao encontro de exemplos e respostas. Nas palavras do samba da Imperatriz: "um sorriso de criança faz a gente acreditar."