Um novo e democrático tribunal do júri (III)

Os trabalhos para promover a reforma setorial do Código de Processo Penal, surgiram da iniciativa do Ministro da Justiça Célio Borja (02/04. 1.º/10/1992) ao nomear o Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, do Superior Tribunal de Justiça para, na qualidade de presidente da Escola Nacional da Magistratura, presidir comissões de juristas encarregadas de realizar estudos e propor soluções visando a simplificação dos códigos de Processo Civil e Processo Penal. Para este último desafio, o Ministro Figueiredo Teixeira firmou a Portaria n.º 3, de 10 de junho de 1992, designando Luiz Vicente Cernicchiaro e Sidnei Agostinho Beneti para as funções de coordenação e secretaria, respectivamente(1).

Desde a primeira reunião da Comissão em Ribeirão Preto (SP), ocorrida em 25 e 26 de setembro de 1992, predominou a orientação de que a reforma não poderia ser global, ou seja, a proposta de um novo e inteiro Código, apesar das tentativas frustrantes. (1970 e 1983). Daí a escolha dos setores do diploma que tivessem maior repercussão com o princípio constitucional do devido processo legal; com os deveres e as garantias das partes, além da simplificação e a eficiência dos procedimentos. E o antigo modelo do tribunal popular (1941) foi revisto na mesa de trabalhos com destaque para setores que exigiam cuidados especiais e urgentes. Fui indicado para redigir um anteprojeto para discussão e receber sugestões no âmbito da Comissão e depois pela comunidade jurídica nacional em reuniões com estudiosos e profissionais, antes de ser levado ao exame final do Ministério da Justiça e daí para o Congresso Nacional. Os textos resultantes das reuniões de Salvador (1.º-3./11/1994) e São Paulo (14-15/11/1994) foram publicados no DOU de 25 de novembro de 1994, ?tendo em vista o interesse em proporcionar o seu conhecimento à comunidade jurídica e à sociedade?, conforme despacho do Ministro da Justiça, Alexandre de Paula Dupeyrat Martins(2).

Em primeiro lugar, houve a preocupação de se manter uma rigorosa sucessão cronológica dos atos e termos do procedimento, caracterizando um sistema orgânico do ponto de vista instrumental e jurídico. A simplificação e a eficácia, como objetivos a perseguir, no contexto de um processo moderno e dinâmico, não devem suprimir fórmulas que se impõem diante do generoso princípio do due process of law e das exigências de segurança e justiça.

Em artigo escrito a propósito da celeridade do processo penal em Direito Comparado, Jean Pradel, catedrático de Direito Penal da Universidade de Poitiers e presidente da Associação Francesa de Direito Penal, lembra que a celeridade do processo pode ser definida de forma negativa e positiva, advertindo que ela não deve ser confundida com a perigosa precipitação. E adverte que já no século XV, o inglês Fortescue escrevia que nunca a justiça se encontra em uma situação tão perigosa como quando se administra muito depressa (?never is justice in such a danger as when it is handed too hastily?)(3).

Os comentários a seguir, analisam os setores que merecem reforma para a melhor operacionalidade do Tribunal do Júri, na perspectiva das lições da doutrina e da jurisprudência.

2. A decisão de pronúncia

Para evitar interferência indébita na consciência do jurado, a nova lei o Projeto estabelece que a fundamentação da pronúncia limitar-se-á à indicação dos requisitos estabelecidos no art. 413: ?O juiz, fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação. § 1.º A fundamentação da pronúncia limitar-se-á a indicação da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação…?.

A lei nova está em perfeita consonância com a orientação da jurisprudência, como se poderá verificar pela decisão unânime da 3.ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, que serve de paradigma: ?Na sentença de pronúncia, fase marcadamente processual é de todo indevida a análise aprofundada da prova e a edição do Juízo de certeza, tarefa essa delegada aos Senhores Jurados, a quem, competem proferir ou não o judiciium condenationis?(4).

3. A intimação da pronúncia

Nos termos do art. 420, I, a intimação da pronúncia será feita pessoalmente ao acusado, ao defensor nomeado e ao Ministério Público; II, ao defensor constituído, ao querelante e ao assistente do Ministério Público, na forma do disposto no § 1.º do art. 370 deste Código. Parágrafo único. Será intimado por edital o acusado solto que não for encontrado.

4. O julgamento sem a presença pessoal do réu

O acusado que respondeu solto ao processo poderá ser julgado independentemente de sua presença física no Tribunal (Art. 457: O julgamento não será adiado pelo não comparecimento do acusado solto, do assistente ou do advogado do querelante, que tiver sido regularmente intimado). Trata-se de ampliar a garantia constitucional do direito de calar, desativando uma das usinas de prescrição. A rotina das transferências injustificáveis e as atitudes do réu – que procura se furtar ao julgamento ou não é encontrado – têm como vertentes a necessidade de sua intimação pessoal, tanto para cientificá-lo da pronúncia como para a data do julgamento.

Por outro lado, a voluntária ausência do réu pode configurar o exercício de sua liberdade em contestar a legitimidade do tribunal. Tal hipótese não é absurda: basta considerar que muitos casos de aborto praticado por motivo de relevante valor social ou moral são alvos de reiteradas campanhas de descriminalização.

O Superior Tribunal de Justiça contém um precedente específico da dispensa do réu para a realização do Júri. Vale transcrever: ?A Constituição da República de 1988 consagra ser direito do réu silenciar. Em decorrência, não o desejando, embora devidamente intimado, não precisa comparecer à sessão do Tribunal do Júri. Este, por isso, pode funcionar normalmente. Conclusão que se amolda aos princípios da verdade real e não compactua com a malícia do acusado de evitar o julgamento?(5).

5. A supressão do libelo

A supressão do libelo já fora proposta no Anteprojeto Frederico Marques (1970), no Projeto n.º 1.268, de 1979 e no Projeto de 1983, coordenado por Francisco de Assis Toledo e aprovado pela Câmara dos Deputados(6).

Com a nova lei, o requerimento de provas e diligências terá oportunidade própria, como se verifica pelo artigo 422, após preclusa a pronúncia. Encerrada a instrução, a palavra será concedida ao Ministério Público ?que fará a acusação, nos limites da pronúncia ou das decisões posteriores que julgaram admissível a acusação, sustentando, se for o caso, a existência de circunstância agravante? (Art. 476).

6. O preparo do processo

Em face da supressão do libelo, o juiz-preparador, deliberando sobre os requerimentos de prova a serem produzidas ou exibidas no Plenário do Júri, e adotar as providências devidas: 1) ordenará as diligências necessárias para sanar qualquer nulidade ou esclarecer fato que interesse ao julgamento da causa; 2) fará relatório sucinto do processo, determinando a sua inclusão em pauta na reunião do Tribunal do Júri (art. 423).

7. O alistamento dos jurados

Houve sensível mudança nesta parte quando a lei nova estabelece que anualmente serão: ?alistados pelo presidente do Tribunal do Júri de 800 (oitocentos) a 1.500 (um mil e quinhentos) jurados nas comarcas de mais de 1.000.000 (um milhão) de habitantes, de 300 (trezentos) a 700 (setecentos) nas comarcas de mais de 100.000 (cem mil) habitantes e de 80 (oitenta) a 400 (quatrocentos) nas comarcas de menor população. § 1.º Nas comarcas onde for necessário, poderá ser aumentado o número de jurados e, ainda, organizada lista de suplentes, depositadas as cédulas em urna especial, com as cautelas mencionadas na parte final do § 3.º do art. 426 deste Código. § 2.º O juiz presidente requisitará às autoridades locais, associações de classe e de bairro, entidades associativas e culturais, instituições de ensino em geral, universidades, sindicatos, repartições públicas e outros núcleos comunitários a indicação de pessoas que reúnam as condições para exercer a função de jurado??. (Art. 425)

O tema da seleção dos juizes de fato estimula debates e análises com o objetivo de sensibilizar os juizes togados e os demais operadores do Tribunal do Júri a fim de se aprimorar a qualidade dos conselhos de sentença e, por via de conseqüência, dos julgamentos(7).

8. O desaforamento

O desaforamento é previsto quando houver interesse da ordem pública, dúvida sobre a imparcialidade do Júri ou quanto à segurança pessoal do réu (Art. 427).

É relevantíssima a inovação que autoriza o desaforamento ?em razão do comprovado excesso de serviço, ouvidos o Juiz-Presidente e a parte contrária, se o julgamento não puder ser realizado no prazo de 6 (seis) meses, contado do trânsito em julgado da decisão de pronúncia? (Art. 428).

Confere-se legitimação ao assistente do Ministério Público para requerer a medida (Art. 427). São óbvias as razões de tal orientação que procura consagrar precedentes de jurisprudência, inclusive do Supremo Tribunal Federal(8).

9. Sorteio e convocação dos jurados

Organizada a pauta o juiz presidente determinará a intimação do Ministério Público, da Ordem dos Advogados do Brasil e da Defensoria Pública ?em dia e hora designados, o sorteio dos jurados que atuarão na reunião periódica? (Art. 432). O chamamento dos prováveis julgadores se fará pelo correio, ou por qualquer outro meio hábil para comparecer no dia e hora designados para a reunião (Art. 434).

Da maior importância é a regra determinando que no mesmo expediente de convocação serão transcritos os arts. 436 a 446 que regulam a função do jurado (Art. 434, parágrafo único).

Estas providências se justificam à luz de duas coordenadas: a) simplificam a chamada, dispensando a convocação pessoal que é onerosa e demorada; b) oferecem aos convocados informações oficiais sobre os direitos e os deveres do juiz leigo.

10. A função do jurado

Não se ignora a dificuldade em se obter a presença de juiz de fato para colaborar com o Poder Judiciário. Além dos benefícios previstos no Art. 437 do CPP em vigor, ou sejam o reconhecimento de serviço público relevante, estabelecimento da presunção de idoneidade moral, prisão especial, em caso de crime comum, e preferência e igualdade de condições nas concorrências públicas, o novo diploma do Júri (Lei n.º 11.689/2008) constitui também direito do juiz do povo a preferência ?no provimento mediante o concurso de cargo ou função pública, bem como nos casos de promoção funcional ou remoção voluntária? (Art. 440).

11. A adequação constitucional do novo diploma

As múltiplas alterações introduzidas no sistema revelam a compatibilidade entre o novo procedimento do Júri e os direitos e garantias constitucionais e inerentes às partes no processo.

Como acentua o Professor Eugênio Pacelli de Oliveira: ?não é mais admissível compreender e muito menos seguir aplicando o processo penal sem a filtragem constitucional. O Código de Processo Penal de 1941 não está superado apenas pelo tempo; está superado também por força da incompatibilidade normativa com o texto de 1988, em cujo bojo construiu-se um sistema de garantias individuais com abrangência suficiente para fazer evaporar diversos dispositivos do nosso CPP?(9). (Segue)

Notas:

(1)     As leis n.ºs 11.689, 11.690, de 9 de junho e a Lei n.º 11.719, de 20 de junho do corrente ano, são fruto dos 17 (dezessete) anteprojetos encaminhados ao Congresso Nacional em 1994, cf. Exposições de Motivos n.ºs 605 a 610. Previamente os textos foram publicados para receber críticas e sugestões (DOU de 25/11/1994, Seção I, p. 17854 e s.).

(2)     Seção I, p. 17854 e s.

(3)     ?The celerity of criminal procedure in comparative law?, em International Review of Penal Law, edição da Associação Internacional de Direito Penal, Paris, 3.º e 4.º trimestres de 1995, p. 323.

(4)     RT 712/382. No mesmo sentido: RT 521/439, 522/361 e 644/258.

(5)     6.ª Turma, unânime, Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, em 2/8/1994, RT 710/344.

(6)     Proj. de Lei n.º 1.655-B,de 1983, aprovado em forma de Substitutivo e publicado no Diário do Congresso Nacional, seção I, supl. de 17/8/1984. A redação final foi publicada no DCN, seção I, supl. De 19/10/1984.

(7)     Especificamente sobre o assunto, Edílson Mougenot Bonfim, ?O selecionamento dos jurados, a questão da ?notória idoneidade? e a boa formação do Conselho de Sentença no Tribunal do Júri?, em RT 693/309 e s.).

(8)     RTJ 487/35; 45/461.

(9)     OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 6.ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p.3.

René Ariel Dotti é professor titular de Direito Penal na Universidade Federal do Paraná; relator do Anteprojeto original da reforma do júri e membro da Comissão Redatora desde 1992 até 2000. Co-redator dos anteprojetos que se converteram na Lei n.º 7.209/84 (nova Parte Geral do CP) e Lei n.º 7.210/84 (Lei de Execução Penal). Detentor da Medalha Mérito Legislativo da Câmara dos Deputados, por proposta do deputado Osmar Serraglio (2007). Advogado. 

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