Um conto de Natal de Charles Dickens à função social da livre iniciativa

Charles Dickens, famoso romancista inglês, viveu em plena Revolução Industrial inglesa. A realidade jurídico-social de sua época afetou o seu destino e produção literária, dedicada a retratar as crueldades sociais, em tipos lendários, como Oliver Twist.

Aos 11 anos, sua família foi presa civilmente por dívidas e Dickens ficou em “liberdade”, trabalhando no curtume, a fim de saldar as contas. Recebeu alguma educação formal, luxo para a época e aos 15 anos, foi auxiliar em uma firma de advocacia. Sim, Dickens também foi estagiário, um dia. Publicou sua primeira história, aos 21 anos, iniciando uma carreira promissora, que se encerraria em 1870.

Sua obra Um Conto de Natal (1843) é a ficção do gênero mais conhecida do mundo. Trata-se de uma história redencionista, protagonizada pelo vilão, Mr. Scrooge (que inspirou a criação do Tio Patinhas, personagem da Disney), empreendedor avarento, que submetia os funcionários a condições de trabalho desumanas, expulsava pedintes e amaldiçoava seu bom sobrinho o pai do pequeno e adoentado Timmy e chefe de um núcleo familiar que não perdia a alegria de viver.

Aos desejos de feliz natal, Scrooge retrucava: – “Bah, que bobagem! Que motivos você tem para estar feliz, sendo pobre desse jeito?”. Porém, uma experiência fantasmagórica pelo natal passado, presente e futuro, patrocinada pelo falecido sócio, o coloca em contato direto com os impactos de sua ganância e abre sua alma para um novo paradigma, Ao retornar são e salvo, Scrooge modifica o seu estilo de vida e daqueles que o cercam, inclusive a do pequeno Timmy.

O arquétipo de Mr. Scrooge persiste na atualidade, refletido no mercado globalizado. Exemplo marcante emerge de certa marca de artigos esportivos, cujas etiquetas são fabricadas por crianças da República Dominicana, pela bagatela de centavos de dólar/hora.

Ironicamente, uma das jaquetas chega às lojas licenciada por uma celebridade “bastante generosa”, quem dedica pequeno percentual das vendas para orfanatos. O quadro é bem retratado pelo documentário A Corporação (Canadá, 2004), premiado internacionalmente, adaptação do livro de Joel Bakan, já lançado no Brasil (Novo Conceito- SP).

Mas o processo redencionista tem sido cobrado e efetivamente aplicado no contexto empresarial, por exigência da sociedade, farta das injustiças extremas, e também por necessidade do próprio mercado, que gradualmente se apercebe de que a irresponsabilidade impacta negativamente aos próprios empreendedores, em um círculo vicioso.

O sol é para todos e certamente que as enchentes também não distinguem as roças de subsistência dos grandes latifúndios, como infelizmente restou evidenciado no recente desastre ambiental brasileiro, que vitimou centenas de cidadãos catarinenses, das mais variadas classes econômicas.

A viabilidade da vida depende da cooperação, assim como sua periclitância atinge a todas as camadas sociais. Responsabilidade socioambiental é questão de sobrevivência.

No espírito de solidarismo constitucional, o Código Civil/2002, no art. 187, delimita a autonomia privada, considerando que o abuso de direito é uma espécie de ato ilícito, ensejador de obrigação indenizatória, condenando o exercício de um direito legítimo, praticado com manifesto excesso de sua finalidade social ou econômica, da boa-fé ou bons costumes.

Eis a base do discurso jurídico privado, para a responsabilidade social, paradigma que dantes residia apenas na consensualidade auto-regulatória do mercado, consistindo na gestão empresarial transparente e observadora do respeito para com o meio ambiente, públicos de interesse (stakeholders) e, no caso das S/As, para com os acionistas (shareholders). Hoje é uma exigência de lei, questionável judicialmente, em face de violação.

O art. 187 anda em consonância com o art. 170, da Constituição Federal, regulamentando, no âmbito privado, a função social da livre iniciativa, que não se esgota na geração de riquezas, pois a concentração de renda é um dos principais fatores de injustiça social; e nem se confunde com filantropia, posto que a caridade é desejável, mas não exigível e nem elide os impactos negativos da atividade empresarial.

A função social da livre iniciativa trata da legitimidade do interesse lucrativo da empresa, desde que aliado à realização da dignidade da pessoa humana e da promoção do bem comum, preservando-se os interesses fundamentais dos envolvidos nas transações funcionários, consumidores, fornecedores, acionistas, dentre outros.

O primeiro natal inaugurou um pacto social de amor ao próximo o maior de todos os mandamentos, segundo o próprio Aniversariante. Diante do endurecimento da sociedade, há quem diga que o sentido religioso do natal se esvaziou. Mais grave, porém, é a constatação de que a festa está mais religiosa do que nunca, tendo apenas desviado o seu objeto culto, passando a embalar o consumismo, em berço de ouro; divindade, aliás, de exposta fragilidade, como denuncia a crise financeira global, que eclodiu em 2008.

Contudo, é na transcendência das nuvens caóticas que prospera a fé. É tempo de esperança, alimentada por empresários e indivíduos, conscientes de seu papel no mundo e de que não é preciso um despojamento estóico para que se realize, comunitariamente, a justiça e felicidade.

A função social da livre iniciativa é um instrumento jurídico de cooperação, para o estabelecimento de uma sociedade livre, justa e solidária. Que neste natal, o foco das reflexões esteja no reconhecimento e valorização de todo Bem que já se possui e no compromisso pessoal com um modo de vida ético e sustentável, em nome da preservação da existência humana.

Coluna sob responsabilidade dos membros do grupo de pesquisa do Mestrado em Direito do Unicuritiba: Liberdade de Iniciativa, Dignidade da Pessoa Humana e Proteção ao Meio Ambiente Empresarial: inclusão, sustentabilidade, função social e efetividade, liderado pelo advogado e professor doutor Carlyle Popp e secretariado pela advogada e professora M.Sc. Ana Cecília Parodi. grupodepesquisa.mestrado@ymail.com. Ana Cecília Parodi é mestranda em Direito Econômico e Socioambiental, pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, especialista em Direito Civil e Empresarial. Autora de obras jurídicas.

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