Todos os pais estão perplexos com a mais recente tragédia paulistana: o assassinato dos pais, premeditado e, aparentemente, comandado pela filha contrariada.
Jovem, bonita, rica. Teve tudo o que é lícito ambicionar. Pais eruditos e profissionalmente bem-sucedidos. Casa de elevado padrão, com piscina e muito espaço para o agradável. Apenas um irmão mais jovem com quem compartilhar o excelente nível de existência. Férias na Europa, carro e mesada. Liberdade exercida nos amplos limites da elástica disciplina contemporânea.
Depois dos mais dispendiosos e reputados colégios, o ingresso numa faculdade que é nicho de excelência. Possibilidade de continuar os estudos no exterior, sonho concretizável por muito poucos.
Como é que uma jovem com esse perfil se torna alvo da influência de alguém de outro extrato, com outra história de vida e, segundo se noticia, já iniciado em drogas? Existe falha de caráter ou do episódio se pode extrair alguma constatação mais genérica?
A reflexão sobre esse trágico resultado para a compreensível resistência ao namoro da filha com seu cúmplice é instigante. Primeiro, não se subestime a deletéria corrosão de valores exercida pelas drogas sobre a juventude brasileira. Essa guerra contra o vício precisa ser um objetivo permanente de todos. Pois as primeiras batalhas não têm sido vencidas pelo bem. O consumo de substância entorpecente cresce e as armas parecem desproporcionais.
Luta-se em desigualdade de condições. O maior beneficiário do grande tráfico está incólume, diante do poder persuasivo do lucro obtido com o crime.
Em seguida, não há como deixar de observar que as elites preparam intelectualmente seus sucessores mediante outorga de uma escolarização voltada para a excelência, mas está ausente qualquer preocupação moral mais firme. A educação formal, na sociedade hedonista, se destina a facilitar a conquista dos bens de consumo. A consecução do nível idealizado de vida consiste na obtenção de ganhos suficientes para a aquisição de tudo o que o dinheiro pode comprar.
O acesso a tudo o que é exterior é facilitado e se converte em obrigação dos pais. Ai daquele que falhar na tarefa de garantir aos filhos as roupas, o carro, o lazer, a diversão contínua e a satisfação de todos os prazeres. Os valores são os típicos de uma sociedade espetacular e vinculada à aparência.
As vozes ouvidas são as do supérfluo e as do efêmero.
Por último, a ausência de Deus é uma constante na maior parte da juventude.
Ainda que se considere o ressurgimento do misticismo como uma das características da pós-modernidade, o efetivamente real é um espírito religioso a la carte. Escolhe-se, aqui e ali, algum pensamento em termos de auto-ajuda, sem comprometimento maior com o ideário da confissão ou com seus dogmas. A juventude treinada para evitar o sacrifício vê com ceticismo ou mesmo com escárnio a privação de qualquer conduta que importe restrição dos seus excessos.
Quais os valores cultivados pelos frutos dessa educação? Qual o significado de renunciar ao instantâneo prazer – a mocidade tem pressa, o ritmo é a aceleração contínua – em benefício de um futuro que se afigura remoto?
Qualquer obstáculo à fruição do gozo deve ser removido. Ainda que esse óbice atenda pelo nome de mamãe e papai.
As vítimas tinham razão quando se preocupavam com o futuro de sua primogênita. Garota linda, bem criada, com um destino aparentemente glorioso. O pai, erudito e respeitado executivo, tinha todo o direito de sonhar com o êxito de seu investimento na educação da filha. A mãe, perscrutadora da alma humana, não percebeu – ou não considerou preocupante – a determinação da garota em persistir na senda perigosa.
Ambos foram mortos com crueldade e frieza. Seja para o álibi ou para desanuviar a consciência, em seguida veio o motel. Uma das frases mais ouvidas estes dias foi: “Matou os pais e foi ao motel.”
O drama não é novo nos meandros da mente humana. A mídia tem noticiado precedentes em São Paulo, para mostrar que o parricídio e o matricídio não representam hipóteses cerebrinas, mas podem ocorrer em qualquer família.
Para comprovação, a literatura e a poesia já se ocuparam do tema. A esse respeito, o poeta Paulo Bomfim recorda La Chanson de Marie-des-Anges, declamação obrigatória de toda menina paulista bem-educada na primeira metade do século passado e que ganhou primorosa tradução de Guilherme de Almeida. Retrata o conhecido episódio do amante ensandecido que, para atender à exigência da amada, arranca do peito materno o coração. Ao correr para entregá-lo, vê cair o coração, que ainda indaga: “Tu te magoaste, meu filhinho?”
O poema foi musicado e consta do repertório de Vicente Celestino, redescoberto há pouco por Caetano Veloso, sob o título Coração Materno. Só mesmo um coração de mãe para compreender o aparentemente incompreensível.
Para todos nós fica a indagação: o que se está a transmitir às novas gerações em termos de valores? Estamos a construir uma civilização melhor do que as anteriores? Existe verdadeiro progresso sem o crescimento do espírito e o aperfeiçoamento moral? São questões das quais deveremos dar conta aos que nos sucederem.
José Renato Nalini
é juiz, é vice-presidente do Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo. Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 11/11/02.