Desumano? Diz humano? Diz o nome? Dizimando?
Num vai e vem de onda significante poderíamos ficar um pouco.
Poderíamos estar na praia paradisíaca, num céu aberto, num grande céu da boca, a encontrar-se na garganta do mar. Céu que delimita da boca, o fundo da garganta de onde placas brancas como ondas vêm devastar as bordas do enorme buraco. Buraco que até então hospedava o doce prazer de se acreditar num paraíso de férias, em suposta paz com um a traidora natureza, iludindo-se como sempre fazemos, num sentimento oceânico, pensando que o mar quando quebra na praia é bonito, é bonito…
Mas eis que a garganta resolve cuspir e regurgitar da grande boca, o causado pela fenda que sempre surpreende.
O mar não é mais o mesmo. É outro, outro que agora já vamos escrever com O maiúsculo, pois não é o outro que supomos conhecer, o previsível, o calculável. O Outro aqui vem de bruta surpresa, arrastando-se e crescendo mudo, silencioso, como só a morte sabe ser.
E lá do fundo desta enorme bocarra, estica-se voraz a língua enorme em ondas, lambendo, empurrando, engolindo e regurgitando toda e qualquer espécie de coisa, objetos que se misturam triturados num coquetel mortífero: cadáveres, carcaças e destroços, tudo deixado, no final do macabro banquete, à beira deste prato onde se deu um canibalismo impiedoso.
Eis aí o Outro anônimo, indiferente, sem referente, Outro reagindo à fenda, refluindo enorme para tamponá-la e cobrando a fatura nas bordas onde a morte, no final, palita os dentes após devorar as carnes da vida.
A boca agora se cerra um pouco, com um estranho gozo e gosto de saciedade, com suas bordas lambuzadas pela orgia macabra na qual se meteu.
Por algum tempo o apetite se recolhe recatado, enquanto as narinas se saturam dos odores macabros.
Se é doce, como disse o poeta, "morrer no mar, nas ondas verdes do mar", lá onde não se sabe muito bem o que se passa, onde a verde manta marina vela o silêncio da morte, o mesmo , podemos pensar, pode não se dar aqui.
Aqui o mar arrebentou bordas e quando se arrebentaram as bordas, se destruiu o limite entre a vida e a morte.
Cyro Marcos da Silva é psicanalista em Juiz de Fora, MG. É membro de Núcleo de Direito e Psicanálise do Programa de Pós-graduação em Direito da UFPR. Ex-juiz de Direito em Minas Gerais, foi professor no Curso de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora.