Os rituais de iniciação datam do início da história da humanidade. Eram utilizados para a distinção dos clãs. Os trotes universitários, mais recentes, surgiram com a história da educação medieval e se referem a um fenômeno específico das instituições de ensino superior que surgiram na Idade Média (Lemos, 2003). Na origem, eles significavam a purgação da “ignorância” na qual se encontravam os calouros, especialmente os camponeses, os quais eram ridicularizados pela zombaria “de odor de besta-fera, de olhar perdido, de orelhas longas, de dentes que pareciam presas e que sofriam o processo de lixamento” (Le Goff, 1989). No Brasil, a prática do trote chegou com os primeiros cursos superiores em 1808 no Rio e na Bahia.

A morte de Edson Tsungchi Hsueh, em fevereiro de 1999 na USP-Universidade de São Paulo, motivou algumas reações entre os universitários, que passaram a praticar outras modalidades de trote: doação de sangue, visita aos asilos e às creches, recolhimento de lixo dos rios, caminhada ecológica, festa de confraternização entre veteranos, calouros, famílias e os profissionais da instituição. Segundo o professor Átila Dreligh, da UERJ-Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Folha Dirigida, 2003), 54% das universidades brasileiras já têm trotes de caráter social, evitando as banheiras de barro e esterco, a raspagem dos cabelos ou pintura do corpo, o pedágio, a intimidação, o excesso de bebidas e, talvez, um corpo no fundo da piscina.

Uma pessoa que observa displicente ao passar perto das universidades em dia de trote poderia se determinar a ser a favor ou contra. Mas numa análise mais reflexiva perceberá que existem outros aspectos a ser considerados. Na sociedade capitalista moderna, o trote é analisado por alguns autores como sintoma ou como a dor que os estudantes de Medicina têm de lidar com a dor alheia (Ribeiro, 1999). Segundo este autor a sociedade terceiriza o cuidado com o insuportável. Por isso, mais que criticar o trote como algo separado de outras questões é necessário olhá-lo no conjunto dos problemas relativos a um infinito de dor (dor extrema, o sangue, a morte, o desespero dos pacientes e parentes).

Em outras palavras, a sociedade não quer se preocupar nem com a dor e nem com a morte e delega essa ocupação para especialistas que ainda são muito novos. Sem prepará-los, os incumbe de tratar a pessoa humana como coisa. É a aceitação, por exemplo, de que esses estudantes pratiquem o trote, que violem a moral para descarregar a dor que neles vai sendo introjetada nos anos de estudo, de sentir-se sozinhos pela falta de preparação para suportar a dor. Isso vale também para estudantes do curso de Direito. Para Ribeiro, o trote violento deve ser proibido e seus praticantes, punidos. Mas é preciso ir além. Os conselhos de Medicina devem mexer nos currículos para passar a pensar o corpo humano não como objeto de práticas técnicas, mas como intervenção médica “na qual humanos agem sobre humanos”.

Num outro olhar, aquele das sociedades tribais, como foi relatado por Clastres (Da tortura nas sociedades primitivas in A sociedade contra o Estado, 2003), George Catlin assistiu, no decorrer de quatro dias, à cerimônia anual de iniciação dos índios mandan. Nessa tribo e em outras sociedades semelhantes, mudam as técnicas, mas a meta é a provocação do sofrimento. É no corpo que é mediatizada a aquisição do saber. Segundo os relatos de Catlin, o iniciado sofre com resignação a provocação de sofrimento até o desmaio. A tortura é a parte principal do ritual de iniciação. Para guardar o saber na memória, os sinais de sofrimento, deixados no corpo pelos instrumentos de tortura, não podem ser pequenos. Precisam ser cicatrizes profundas porque uma pessoa iniciada é pessoa marcada. Ao ser impressa a marca da sociedade no corpo dos jovens, eles permanecem silenciosos. Silêncio é consentimento.

Os jovens se tornam membros integrais da comunidade na qual nada falta e nada sobra. Na iniciação do grupo é revelado um segredo: “Sois um dos nossos. Cada um de vós é semelhante a nós, cada um de vós é semelhante aos outros. Tendes o mesmo nome e não o trocareis. Cada um de vós ocupa entre nós o mesmo espaço e o mesmo lugar: conservá-lo-eis. Nenhum de vós nos é inferior, nem superior. E não vos podereis esquecer disso. As mesmas marcas que deixamos sobre o vosso corpo vos servirão sempre como uma lembrança disso” (Clastres, 2003, p. 202-203). Na lei tribal, a desigualdade é proibida. Nessas sociedades, que são contra o Estado, é no corpo que o “texto” da lei é impresso.

Salvas as devidas proporções comparativas, as sociedades tradicionais marcam seus jovens para que eles se distingam, mantenham suas origens e vivam em igualdade. No contexto da sociedade capitalista moderna, os trotes são justificados como meios de integração pelos que já estão no sistema educacional universitário. No entanto, nas sociedades tribais, os rituais de iniciação, em geral, celebram a vida depois da dor e os iniciados ganham um espaço e uma identidade. Na sociedade capitalista moderna, após o ritual do trote tradicional, alguns veteranos anestesiam a dor de ter que lidar com a dor social sem estar preparados, outros encerram ali seus esforços de integração, e os calouros começam seus cursos, mas sem a garantia da igualdade, da inclusão social, da cidadania, que resultam da pertença grupal.

Zélia Maria Bonamigo é jornalista, especialista em Mídia e Despertar da Consciência Crítica, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná. E-mail:

zeliabonamigo@uol.com.br
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