Triste história do deputado que queria ser ministro

Tinha um nome sonoro, peregrino, raro: Anaxágoras Anaximandro. O pai, naturalmente, gostava, era mesmo devoto dos filósofos gregos mais antigos, além de ter sido namorado, por alguns anos, de uma grega mais moderna, chamada Penélope Atena. Mas deixemos de lado tais picuinhas. São águas passadas, que desaguaram certamente no infinito mar do olvido. Vamos em frente. Anaxá, como lhe chamava carinhosamente a cara-metade Maria das Graças (para o qual ela era simplesmente Gracinha), era deputado federal pela quinta legislatura, representando um estado qualquer do nordeste, cujo nome esqueci ? ou que não quero nomear, por razões estratégicas. Era um tipo curioso, talvez estranho, se não ímpar. Tinha algo de um personagem de ficção de Machado, Graciliano ou Jorge Amado. A fronte, embora fosse apenas a metade daquela ostentada pelo Pacheco queirosiano, ainda era bastante larga e funda, rodeada por uma cabeleira negra, de azeviche.

À maneira da pachequíssima figura, também ele era mais famoso pelos seus silêncios do que pela sua oratória. Às vezes, ficava quase um ano sem abrir a boca na Câmara, mesmo durante o pequeno expediente, nas clássicas sessões ?pinga-fogo?. Quando falava, porém, fazia sucesso. Os taquígrafos, bem como os raros pares que permaneciam no plenário, apuravam os ouvidos, na expectativa de algumas pérolas conceituais, sobretudo quando abordava a temática ? e a problemática ? da cultura da macaxeira (também chamada de aipim, mandioca, manduba e mais uma dúzia de designações, em Portugal e nos diversos estados brasileiros), em que se considerava ? e era de fato ? um especialista indiscutível.

Com transparente imodéstia, ele considerava-se, como dizia, ou melhor, sussurrava, no leito, aos ouvidos da cara-metade, uma espécie de Vieira ?sem estalo?. No caso, a expressão ?cara-metade?nada tinha de metafórico. Pelo contrário. De fato, ela não saía barato para o parlamentar. A compra freqüente de vestidos, sapatos, bolsas e outras bugigangas e adornos, como pensava às vezes o deputado com os seus botões, era realmente para… lamentar. Sem trocadilho, leitor que me lês, ?mon semblable et mon frére…?.

Apesar de tudo, depois de muitos anos de atividade política, Anaxá não tinha perdido inteiramente algo de provinciano, na sua arquitetura biopsicológica. Procurava disfarçar, é claro. Mas a querida consorte punha tudo a perder, quando abria a boca, donde jorravam, como de torneira inesgotável, asneiras, necedades, despautérios, sandices. Que fazer? Na escola, ela não tinha ido além do primeiro grau primaríssimo. Talvez por isso, uma das suas amigas, de língua viperina, venenosa, tinha afirmado um dia que, se ignorância fosse trompete, Gracinha seria uma trompetista exímia. E mais: que o seu cérebro era mais furado do que queijo suíço tipo exportação, com buracos cheios de ar… dos Alpes, excelente para bronquites crônicas e asmas anacrônicas. Com amigas desse quilate, Gracinha, para quê inimigas?

Mas deixemos de lado a esposa. O que me importa, aqui e agora, é o marido parlamentar. Pode-se dizer, em abono da verdade, que este não oscilava pendularmente, como tantos dos seus pares, entre a demagogia cética e a desonestidade cínica. Era um político até certo ponto respeitável, na sua ?aurea mediocritas?.

Já escrevi bastante e ainda não cheguei ao essencial: Anaxágoras Anaximandro tinha um sonho, que só havia confessado à mulher, muito em sigilo, para que nem as paredes ouvissem a confissão megalomaníaca. À maneira do conspícuo Martin Luther King, também ele poderia clamar, com voz altissonante, ?urbi et orbi?: ?I have a dream…?. Mas ele limitava-se a sussurrar para a consorte, quase em surdina, no vernáculo camoniano: ?tenho um sonho, Gracinha querida ? ser ministro…?.

O sonho era esse. Queria integrar o ministério, o infeliz. Sempre que havia uma reforma ministerial no horizonte, ele ficava transtornado, cabreiro, indócil. Pertencendo ao maior partido de sustentação do governo (sempre o mesmo, fosse qual fosse o governo…), e na sua condição de Vieira ?sem estalo?, julga-se com todas as condições para aspirar, pelo menos, ao Ministério da Agricultura, ?expert? que era, como já vimos, no cultiva da mandioca. Mas serviria até mesmo, por que não, a pasta importantíssima da Pesca em lagos, mares e rios. Afinal, ele era um tradicional pescador de cascudos e lambaris.

Foi por esse tempo que mais uma crise, a um só tempo política, econômica e social, eclodiu. Os meios de comunicação de massa trombeteavam que a reforma ministerial estava iminente. O presidente estaria insatisfeito com a atuação pífia da esmagadora maioria do ministério que, segundo um famoso cientista político, sofria de doença terminal: dois ou três dos seus integrantes carregavam o andor e os outros, que não eram poucos, talvez duas ou três dúzias, cantavam desafinados…

Chegou a minha hora, pensou o excelente Anaxá. Mas não disse nada para Gracinha, para não deflagrar falsas esperanças.

Não disse ainda, mas vou dizer agora: entre outros defeitos, menores, a Gracinha tinha o mau hábito de abrir as cartas dirigidas ao parlamentar. Geralmente, por eleitores. Mas ela preocupava-se sobretudo com solicitações de eventuais… eleitoras. Ora, nessa manhã em que a crise se espreguiçava pelos latifúndios da política, ela abriu uma epístola que a deslumbrou. Distinguiu apenas uma frase, em negrito, no alto da página: convite para ser ministro. As letras pareciam labaredas coruscantes. Não quis ler mais nada. Aturdida, perplexa, excitada, quase sem voz, gritou para o marido, por entre a porta entreaberta do banheiro:

? Anaxá, Anaxá… O seu sonho realizou-se!

Sob o jato forte do chuveiro, sem compreender muito bem, ele gritou também:

? O que é que você está dizendo, Gracinha?

E ela:

? O seu sonho realizou-se, Anaxá. Você vai ser mesmo ministro…

Ele desligou o chuveiro e enxugou-se rapidamente, com a toalha felpuda. Seria possível que, finalmente, o governo se tivesse lembrado dele? E qual seria sua pasta, santo Deus?

 Pegou a carta das mãos da Gracinha e leu, em voz alta:

?Tenho a grata satisfação de comunicar a Vossa Excelência que, por decisão unânime deste Conselho, está sendo nomeado, para o próximo biênio, a exercitar as meritórias funções de ministro da Eucaristia desta paróquia…

Ele interrompeu a leitura, desolado. Tão desolado como aquele personagem de Camilo, enfrentando provação idêntica. E falou, melancolicamente:

 ? Ora bolas, Gracinha… ministro da Eucaristia da paróquia?

Foi então que a Gracinha, revelando uma grandeza insuspeitada, bradou:

 ? E não é melhor ser ministro da igreja, do que de um governo qualquer?

Ele não respondeu. Ficou em silêncio. Mas uma lágrima de frustração, irreprimível, deslizou sobre a sua face pálida, sob uma das pálpebras.

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