Tributo ao professor Nilo Batista

O impressionista do sistema penal

Nilo Batista é o impressionista do sistema penal brasileiro. A ele devemos, todos nós – de variados estilos das academias jurídicas, das oficinas profissionais e das salas forenses – a luminosidade e as cores com as quais são reproduzidos, em imagens vibrantes, os fatos e os seres humanos. A essência e a circunstância dos objetos adquirem tonalidades próprias de um observador que não se limita a reproduzir estereótipos.

Uma exposição aberta em 15 de abril de 1874, num antigo estúdio fotográfico do Boulevard des Capucines, em Paris, iria revelar 30 artistas que se reuniram em grupo sem a intervenção do Estado e sem a tutela de um júri. Assim nasceu o impressionismo, uma corrente vanguardista e revolucionária. As paisagens, cenas urbanas e temas da vida cotidiana eram exibidas em tons luminosos e ambientes coloridos. Alguns desses quadros tinham sido pintados diretamente no local de seu tema, na natureza. ?Tratava-se de um protesto contra o ?pó? de uma arte de atelier que ia buscar os seus temas, exclusivamente, na história e na mito logia e que era, muitas vezes, dominada por cores sombrias e terrosas, numa iluminação artificial e constrangida. A pintura impressionista ficou como a época mais fascinante e a mais querida do público. Prova disso é a impressionante série de exposições dos últimos anos com Degas, Gauguin, Van Gogh, Manet, Monet ou Renoir e as verbas alcançadas na venda de quadros impressionistas?(1).

Nos anos que antecederam a Renascença, muitos pintores começaram a reproduzir cenários não como eles eram conhecidos mas de um ponto de vista particular, de maneira que um homem de perfil era mostrado com apenas um olho e um homem em primeiro plano aparecia maior do que o castelo ao fundo. Em suma, o público foi treinado para aceitar o uso da perspectiva, uma convenção que veio a ser tão natural que os europeus ficaram surpresos ao descobrir que para a população alheia à sua tradição a pintura de uma mesa em perspectiva simplesmente parecia um desenho de uma mesa torta. Segundo Mark Powell-Jones, a grande conquista dos impressionistas foi comparar a revolução que ocorreu na Renascença, quanto à representação da forma, com a revolução na representação da cor. Pela primeira vez na história da arte eles realizaram prolongados e harmônicos esforços para pintar objetos não com a cor que nós sabemos que eles têm, mas com a cor que nós os vemos(2).

Nos mais diversificados textos doutrinários nilo batista revela uma compulsão vangoghiana para mostrar a realidade como ela é sem o disfarce das teorias sibilinas e a máscara dos conceitos epidérmicos. O genial Vincent, em carta ao irmão Theo, disse: ?Há leis de proporção, de luz, de sombra e de perspectiva, que é preciso conhecer para desenhar um motivo; se essa ciência nos falta, arriscamos travar eternamente uma luta estéril e não conseguimos nunca criar?.

Neste breve ensaio é impossível reproduzir o imenso número de exemplos pelos quais o penalista mostra a visão impressionista. Seguem alguns deles. Ao aludir à questão das Escolas Penais, ele denuncia o ?raquitismo proveniente dos esquemas?. Em certas passagens de sua crítica lembra a vitalidade de Monet, o pintor da luz(3), quando chegou à grande descoberta: ?Com o passar do tempo, abri meus olhos e, então, compreendi verdadeiramente a natureza e aprendi a amá-la?. E investe com pinceladas de luz e cor: ?Na paixão enciclopedista pelas classificações, por este curiosamente universalizado instrumento epistemológico de autolimitação do saber, temos não só o (mau) hábito dos juristas de tentar conhecer pela classificação, mas principalmente sua satisfação mental com sistemas dogmáticos classificatórios, capazes de destrinçarem-se conceitualmente em nível molecular, mas inapetentes para se perguntarem pelos papéis que estão concretamente cumprindo no mundo histórico? (?No quarto de despejo do penalismo ilustrado?, em Novas tendências do Direito Penal, p. 74). A linha impressionista dos Discursos Sediciosos ficou bem clara no editorial de seu primeiro número nas palavras do diretor Nilo Batista: ?(…) pretende interessar na conjuntura criminológica nacional muitos e diferentes olhares;? e interrogar ?este complexo universo de problemas que o exercício do poder penal apresenta, objeto de tantas dissimulações ideológicas, de tantas manipulações cotidianas (…)?. A ?Nota Prévia? lançada na Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, bem revela o marasmo da doutrina e ?o tratamento repetitivo e linear que os sedimentos básicos do estudo do direito penal merecem da maior parte de nossos livros?. Com a tese que obteve a titularidade de Direito Penal da UERJ, Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro (I), o homenageado preenche um vazio que os escritores geralmente omitem, passando da época de Justiniano, no Império Romano, diretamente à Colônia brasileira. A pesquisa histórica lhe permitiu também o conhecimento e a percepção de sistemas penais contra os servos, judeus, hereges, índios, escravos e negros. Lembra, nessa investigação, a ansiedade de Paul Cézanne: ?Quero conhecer para melhor sentir; e sentir para melhor conhecer?.

As frases e as expressões contundentes acerca do homem, da vida e do mundo que envolvem os textos de Nilo Natista são modeladas com firmeza pela espátula que vai deixando na tela as impressões fortes de sua verdade: ?A dogmática é o mais prestigiado e eficaz método em uso na ciência do direito, porém não a guardiã solitária das chaves epistemológicas do reino?. (Introdução, p.117); ?A dogmática não é, por certo, uma leitura pontilhada da lei? (Idem,, p. 118); ?camisa de força? (criticando a ortodoxia no trato do problema das drogas); ?o jurista tirou por um momento os olhos da lei penal e se permitiu também olhar para o sistema penal, ou seja, um conjunto coordenado de agências políticas legislativas, judiciárias, policiais, penitenciárias e, last but not least, de comunicação social? (?Os sistemas penais brasileiros?, em Novas tendências, p. 103); ?uma estúpida quizila de constituintes denominou hediondos, um encarceramento neutralizante?. (Idem, ibidem, p. 114).

Enquanto o pintor mistura na paleta as tintas para obter as cores mais impressivas o penalista compõe na mente as idéias mais lúcidas.

No conjunto de sua obra doutrinária, Nilo Batista demonstra clareza e vigor contra o tecnicismo jurídico que ?tende à compreensão e justificação do direito penal vigente?,(4) para sustentar, com as imagens e as cores mais aliciantes, que ?a construção dos conceitos dogmáticos deve incorporar os dados da realidade (Zaffaroni) e a constatação de seus efeitos sociais concretos? (Introdução, p. 121/122).

A transformação da pintura no final do Século XIX enquadrou-se numa subversão dos valores acadêmicos. A concepção clássica estabelecia uma divisão em gêneros superiores (história, religião, mitologia, alegoria) e inferiores (cenas cotidianas, retratos, paisagens e naturezas mortas). Pouco a pouco o tema perdeu a sua antiga importância e tendeu a ser converter num mero pretexto, pelo que os temas chamados inferiores superaram, em quantidade e qualidade, os superiores. Além disso, a pintura tradicional concedia um valor supremo à composição e ao desenho, relegando a cor e a pincelada como elementos ínfimos e auxiliares que podiam ser exibidos nos esboços ou estudos do natural, mas não no quadro acabado(5).

A grande viragem da arte pictórica foi revelar que as pessoas, os animais, os cenários e as coisas transportadas à tela pelos impressionistas não eram simples reprodução visual como se faz com a fotografia. O naturalismo da forma cedia diante do poder dos traços, das manchas e da cor, os grandes protagonistas desse novo tempo de liberdade individual e da força dos sentimentos.

Prerrogativas profissionais do advogado

Um desafio de resistência e perseverança

1. A mídia e o controle social-penal

Inúmeras apurações de fatos tidos como delituosos sofrem a interferência e não raro o combustível ideológico da mídia que age ao lado e muitas vezes à frente dos agentes públicos, num cenário de preconceito marcado por abusos da chamada imprensa investigativa.

Um Estado Democrático de Direito deve proteger a liberdade de comunicação dos fatos socialmente relevantes. A Constituição declara que nenhuma lei conterá dispositivo que possa embaraçar a ?plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social …? (art. 220, § 1.º). Mas antes de encerrar tal proclamação, a mesma norma adverte: ?observado o disposto no art. 5.º, IV, V, X, XIII e XIV?. E o inciso X afirma: ?são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação?.

E como ficam esses direitos da personalidade quando meros suspeitos são apontados publicamente como culpados? A Constituição estabelece que ?ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença condenatória? (art. 5.º, LVII), isto é, quando não couber mais recurso contra a condenação. É preciso subverter o princípio da presunção de inocência para que detalhes da investigação preliminar atendam ao dever de informar?

Certos profissionais da mídia e muitos juristas de plantão compõem a vasta fauna dos juízes paralelos, ou seja, todos os que se consideram capazes de julgar as condutas alheias com o mesmo vigor de uma sentença transitada em julgado. Nas áreas humanas e sociais é comum a prática de um journalisme à sensation repleto de clichês acerca do endurecimento da lei e do estímulo às expedições punitivas. Esses esquadrões de justiçamento sumário transformam a notícia em libelo. Âncoras e outros especialistas da informação usam a palavra como lâmina de guilhotina a ceifar a honra e a dignidade das pessoas contra as quais existe a análise incipiente de um fato ilícito. Os juízes paralelos são os apóstolos da suspeita temerária e os militantes da presunção de culpa. A propósito, Nilo Batista observa muito bem que a mídia ?chamou a si o estratégico discurso do controle social penal. Os esgares do âncora de um telejornal são mais importantes para a política criminal brasileira do que a produção somada de nossos melhores criminólogos e penalistas?(6).

Muitos Delegados de Polícia, instigados pela imprensa para opinar sobre inquéritos que presidem, excedem-se nas entrevistas comprometendo a eficácia das diligências e a respeitabilidade do cargo. São comuns, em casos de repercussão, as notícias de que fulano ou beltrano será indiciado pelo crime quando inexiste o indiciamento como ato formal do processo penal. Alguns membros do Ministério Público cometem o abuso de conceder entrevistas a respeito de fatos que estão sob apuração ainda incipiente e assumem um compromisso tácito com uma das versões do episódio. Essa conduta, sem dúvida alguma, anula a imparcialidade que deve ser inerente aos agentes da nobre instituição que tem, entre os seus mais altos objetivos, a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, como, por exemplo, o reconhecimento da inocência de suspeitos ou indiciados. O Promotor ou Procurador de Justiça investiga a culpa, mas deve, também, apurar a inocência se as circunstâncias do caso assim o determinarem. É também na classificação dos juízes paralelos que despontam muitos deputados e senadores, usando a Comissão Parlamentar de Inquérito órgão de notável relevo institucional e democrático como passarela de vaidades e corredor de abusos, imitando grotescamente os magistrados da Inquisição que reuniam na mesma pessoa as funções de investigar, acusar e julgar.

A divulgação açodada de informações e os tribunais parlamentares ditam as condenações antecipadas nas quais as violações à imagem, à honra, à intimidade e à vida privada constituem rotina intolerável. São episódios com efeitos traumáticos para a vida de muitas pessoas que, acusadas hoje, podem ser absolvidas amanhã.

Mas a sentença ética proferida pela sociedade jamais será revista com o mesmo formato da notícia ou da reportagem.

E os danos materiais, morais e espirituais desses novos tipos de erro judiciário, quem os irá reparar?

2. Veredictos e condenações

Em palavras memoráveis sobre o tema ?Vereditos e condenações?, o búlgaro Elias Canetti – Prêmio Nobel de Literatura (1981) – retrata o pesaroso espetáculo de adesão crescente das massas populares às organizações nazistas, na Alemanha e Áustria dos anos 30. Aludindo à ?enfermidade do julgamento? como fenômeno generalizado da humanidade, assim observa com lucidez e vigor: ?Temos constantemente a oportunidade de flagrar conhecidos, desconhecidos e a nós mesmos nesse processo do condenar. O prazer do veredicto negativo é sempre inequívoco. Trata-se de um prazer rude e cruel, que não se deixa perturbar por coisa alguma. Um veredicto somente é um veredicto se proferido com uma segurança algo sinistra. Desconhece a clemência, da mesma forma como desconhece a cautela. Chega-se a ele com rapidez, e que tal se dê sem reflexão é algo perfeitamente adequado à sua essência. A paixão que o veredicto revela está ligada a sua velocidade. O veredicto incondicional e o veloz são os que se desenham como prazer no rosto daquele que condena?. (….) ?O juiz sentencia continuamente, por assim dizer. Seu veredicto é a lei. O que ele julga são coisas bastante específicas; seu extenso saber acerca do bem e do mal provém de uma longa experiência. Mas mesmo aqueles que não são juízes aqueles aos quais ninguém designou nem designaria em sã consciência para tal cargo -, mesmo esses atrevem-se sem cessar a proferir veredictos, e em todas as áreas. Nenhum conhecimento objetivo é exigido para tanto: podem-se contar nos dedos aqueles que reservam para si seus veredictos porque deles se envergonham. Essa enfermidade de julgamento é uma das mais disseminadas entre os homens, acometendo praticamente a todos?(7).

3. O discurso político do crime

Há alguns anos, no I Encontro Brasileiro dos Advogados Criminalistas, coordenado pelo colega Elias Mattar Assad no ano de 1993 e do qual resultou o nascimento da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas, tive oportunidade de afirmar que ?o discurso político do crime é a exploração da violência. É a exploração do crime! Não no interesse da preservação da segurança individual e coletiva ou com a preocupação de atenuar o sentimento de insegurança. O discurso político do crime é um instrumento utilizado especialmente por políticos ou por candidatos a cargos políticos e que geram dividendos do poder. Estimulam, inclusive, empreendimentos securitários, criam dificuldades para o relacionamento da sociedade e aplaudem o sensacionalismo da imprensa e dos demais meios de comunicação. Contra o discurso político do crime, penso, nós advogados criminalistas, devemos ter uma posição muito firme de resistência e de contestação, sem que isto possa se caracterizar como tentativa de restrição à liberdade de informação que é essencial num Estado Democrático de Direito?(8).

4. A reiteração dos atentados

Passados os anos, multiplicaram-se as lesões ao princípio da presunção da inocência e às prerrogativas funcionais do advogado, que sofre restrições intoleráveis ao exercício de seu munus público. Agora, porém, com uma circunstância agravante: em algumas situações, é o próprio Poder Judiciário que, por uma parcela de seus membros e não raramente, está homologando quando não praticando algumas das violações contra a liberdade do exercício profissional e aos direitos inalienáveis de pessoas suspeitas ou acusadas de infrações. Os juízes estão com medo, lembrando o célebre discurso de Sartre quando falou contra a execução do casal Rosenberg, condenado nos Estados Unidos pela suposta espionagem em favor da Rússia.

Nos dias correntes, muitas práticas abusivas estão sacrificando a declaração constitucional de que o advogado é indispensável à administração da Justiça. Existem muitas dúvidas e certezas que podem ser assim resumidas:

Os princípios do contraditório e da ampla defesa têm efetividade? A exigência do devido processo legal tem sido atendida, com regularidade, pelo Judiciário? A CPI pode intimar alguém para prestar esclarecimentos como testemunha e, no curso da inquirição, converter o ato em interrogatório, transformando o depoente em indiciado? O advogado pode formular perguntas às testemunhas? O cidadão pode ser coagido a depor contra si? A decisão liminar, do Ministro Cezar Peluso, garantindo o direito à imagem de um convocado para depor na CPI do Senado Federal, contra a exploração midiática, foi bem deferida? E o Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição, poderia cassá-la? Porque não foi concedido aquele Mandado de Segurança, impetrado pelo colega para ter acesso ao inquérito policial aberto contra o seu cliente e no qual foi decretado o sigilo, se o Estatuto da OAB que é lei federal garante a vista dos autos ao procurador judicial em qualquer hipótese? O advogado é tratado por alguns juízes preconceituosamente em relação ao agente do Ministério Público? Os vasos comunicantes entre alguns agentes do Ministério Público e setores da mídia sensacionalista na divulgação açodada de fatos que ainda estão sendo apurados atende, na verdade, o interesse social ou é um fato revelador de desvio ético e da violação do princípio clássico da presunção de inocência? E a chamada delação premiada, que está recebendo apoio e sendo institucionalizada por alguns magistrados federais, é socialmente benéfica para a ampliação da responsabilidade criminal ou, na verdade, é um estímulo para o erro judiciário e uma violação aberta aos princípios do contraditório e da ampla defesa por parte dos delatados, além da ofensa ao princípio da justa retribuição penal com a oferta de pena menor ao delator?

5. Como garantir as garantias?

O que podemos nós, advogados criminalistas, fazer para que sejam garantidas as garantias? O advogado não pode ser vassalo de jurisprudência leniente, ilegal ou abusiva.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Organização das Nações Unidas, em Paris (1948), estabelece que ?toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente, até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa? (art. XI, n.º 1). O documento foi assinado por representantes de diversos países, inclusive do Brasil.

A invocação do vigoroso texto vem a propósito da manifestação de doze renomados advogados junto ao presidente do Superior Tribunal de Justiça, Ministro Raphael de Barros Monteiro Filho. Eles se queixaram da ?forma açodada e descriteriosa com que o Judiciário tem deferido medidas de força?, nas recentes operações da Polícia Federal e das dificuldades para o exercício da defesa. Estão previstos também e com a mesma pauta, encontros com a presidenta do Supremo Tribunal Federal, com o Ministro da Justiça e com o Procurador-Geral da República.

Em entrevista para a Folha de S.Paulo, o Conselheiro Federal da OAB, Alberto Zacharias Toron, desnudou o paradoxo: ?(…) é inaceitável que, em pleno período democrático se utilizem práticas que lembram o período da ditadura militar: a invasão de escritórios de advocacia, não porque haja cocaína nesses locais, mas para facilitar obtenção de provas?(9).

Os causídicos já haviam mantido entrevistas com a Ministra Ellen Gracie e com o Ministro Cezar Peluso, ambos do Supremo Tribunal Federal, queixando-se da falta de garantias para o desempenho dos mandatos, entre elas, o direito de acesso aos procedimentos investigatórios e da entrevista pessoal e reservada com os clientes. Também o uso desnecessário de algemas foi mencionado. Naquela oportunidade, o Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil interferiu para que essas e outras cláusulas constitucionais e legais fossem observadas pela Polícia Federal.

Reportando-se ao aludido incidente, o bâtonnier Cezar Britto disse muito bem: ?Não se pode confundir o advogado com eventuais erros de seus clientes. Não pode a polícia ou quem quer que seja tratá-lo como se fosse o próprio delinqüente. Não pode lhe negar acesso ao cliente ou lhe ocultar as causas da prisão. Há muito clamamos por polícia eficiente, investigativa, cidadã. Mas não queremos que se confunda eficiência com arbitrariedade, rigor com truculência, justiça com linchamento. Não há qualquer conflito entre eficiência e legalidade?(10).

Essa relevante petição de princípio está em perfeita harmonia com a deliberação do Conselho da Justiça Federal, integrado por oito ministros do Superior Tribunal de Justiça, que em reunião no mês de maio em Porto Alegre, recomendou cautela na expedição de mandados de prisão e de busca e apreensão. Segundo o Ministro Fernando Gonçalves – em sua proposta acolhida por unanimidade de votos os magistrados devem estabelecer critérios e regras para se prevenirem os abusos(11).

6. Um exemplo de violação de prerrogativa

No Inquérito Policial n.º 2006.72.00.000486-5/SC, que tramita na Delegacia de Polícia Federal em Florianópolis, a autoridade indeferiu o pedido de vista dos autos, formulado pela advogada de defesa de um cidadão investigado, com o seguinte despacho: ?1. Junte-se a petição apresentada por (…), através de sua procuradora, na data de hoje; 2. Considerando o conteúdo da decisão judicial, especificamente a folha 125, entendo que o pedido de vistas deve ser deliberado pelo Juízo; 3. Verificando, por outro lado, que o pleito foi motivado pela intimação de (…) para audiência sendo o intento da prévia vista dos autos certamente o de aquilatar o que de fato a polícia sabe, ofendendo-se assim a natureza inquisitorial da investigação, opinamos pela postergação da vista dos autos, em sendo o caso, para após a audiência. Saliente-se, ainda, a apresentação de requerimento às vésperas da oitiva, agendada para o próximo dia 16/8, conforme certidão de folha 211; 4. No que tange à expedição de precatória, ausente qualquer motivação de ordem concreta, o mesmo é de ser indeferido. Florianópolis, 13 de agosto de 2007?(12).

***

No caso concreto, o cliente havia recebido uma intimação por escrito para prestar declarações sem que houvesse qualquer indicação quanto ao fato a ser esclarecido. No interesse de se inteirar do assunto, a advogada pretendeu conhecer o conteúdo do inquérito que não está sob a determinação formal de sigilo.

E a decisão judicial foi a seguinte:

?Requer o advogado constituído por (…) seja deferida vista dos autos para fins de extrair cópias (fl. 213/215) com a finalidade de ?possibilitar a defesa? de seu cliente.

?Com vistas, o órgão ministerial se opôs ao pedido, aduzindo, em suma, que o inquérito policial é, por sua essência, inquisitorial, prestando-se exclusivamente à colheita de provas da materialidade e autoria dos fatos investigados. E, além disso, acrescenta que a estratégia investigativa do Estado deve ser privilegiada, máxime ante a ausência de qualquer potencial prejuízo ao requerente.

?É o breve relatório.

?De modo geral, o sigilo das investigações na fase inquisitorial do processo tem como objetivo permitir que a autoridade policial efetue as investigações, dentro dos limites legais, sem que possam investigados ou terceiros, que venham a ter conhecimento das ações policiais, se antecipar àquelas e, com isso, frustrar a eventual aplicação da lei penal.

?É necessário esclarecer que, em se tratando de procedimentos investigatórios, estes são regidos pelo princípio inquisitório, não se lhes aplicando o princípio processual constitucional do contraditório (Tribunal Regional Federal da 4.ª Região Habeas Corpus n.º 2007.04.00.023688-9/PR Relator Juiz Federal Luiz Carlos Canalli).

?A ampla defesa, por não haver qualquer acusação do Estado contra os investigados, também é exercida nessa fase com limitações, incidindo apenas quando violado direito individual.

?Pelos motivos expostos, acrescido do fato de não haver qualquer indiciamento no procedimento em questão a legitimar o pedido, INDEFIRO o requerimento de fl. 213.

?Dê-se ciência ao subscritor do pedido.

?Após, baixem-se os autos ao Departamento de Polícia Federal para a continuidade das investigações.

?Florianópolis, SC, 15 de agosto de 2007?(13).

***

A Lei n.º 8.906/94 (Estatuto da Advocacia e da OAB), estabelece no art. 7.º, XIV, ser direito do advogado ?examinar em qualquer repartição policial, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de inquérito, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos?(14).

Há precedentes, tanto do Supremo Tribunal Federal como também do Tribunal Federal da 4.ª Região, no sentido de que este direito deve ser respeitado. Vale transcrever a seguinte ementa: ?habeas corpus. vista de procedimento criminal sigiloso. diligências já efetuadas. possibilidade. precedente do stf. 1. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do habeas corpus n.º 82.354/PR (Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julg. em 10/8/2004) firmou entendimento no sentido de ser possível ao defensor constituído ter acesso aos autos do inquérito policial, ainda que tramitando em segredo de justiça, face às prerrogativas constantes do Estatuto da Advocacia (art. 7.º, inc. XIV, da Lei n.º 8.906/94) à exceção das diligências em curso. 2. Deferido, in casu, vista do procedimento investigatório ao procurador do investigado, salvo em relação às medidas em andamento, cujo sigilo se faça necessário?(15).

O que fazer quando as autoridades de hierarquia inferior não consideram a jurisprudência prevalente nos tribunais do país em matéria de prerrogativas do advogado?

Notas:

(1) Ingo F. Walter, A pintura impressionista, tradução do original alemão por Alice Milheiros e outros, Singapura: Taschen, 2006, p. 7.

(2) Impressionism. Phaidon Press Limited, London/New York/Singapore, 2002, p. 5.

(3) O seu quadro Impressão, sol nascente (1872), foi o símbolo do movimento iniciado dois anos após.

(4) Heleno Fragoso. Lições de Direito Penal Parte Geral, Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 13.

(5) Ângela M. Paraíso, O impressionismo, tradução do original espanhol (El Impressionismo), por Marisa Costa, Lisboa: Editorial LIBSA, 2001, p. 18 e s.

(6) ?Os sistemas penais brasileiros?, da coletânea Novas tendências do Direito Penal, Rio de Janeiro: Editora Revan, 2004, p. 114.

(7) Massa e poder, trad. de Sérgio Tellaroli, São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 296/297. (Os destaques em itálico são meus).

(8) Em Os criminalistas, publicação da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994, p. 66.

(9) Edição de 22/5/2007, p. A8, ?Advogados criticam decisões do Judiciário nas operações da PF?.

(10) ?O direito de defesa?, artigo publicado no caderno Direito e Justiça, p.2, suplemento do jornal O Estado do Paraná, edição de 20/5/2007.

(11) A posição do CJF foi noticiada pela Folha de S.Paulo, edição de 22/5/07, p. A8.

(12) Seguem-se a assinatura e o nome do Delegado de Polícia Federal. (Transcrição fiel do despacho. O destaque sublinhado é do original. Os destaques em itálico são meus).

(13) Segue-se a assinatura e o nome da Juíza Federal. (Transcrição fiel do despacho-decisão. Os destaques em itálico são meus).

(14) O texto não excepciona, como o fez o inciso anterior, a hipótese de sigilo dos autos. Mas, no caso citado não há determinação de sigilo, como foi observado.

(15) HC n.º 2006.04.00.002781-0/PR, Rel. Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro, 8.ª Turma, j. em 22/2/2006, decisão unânime. (Os destaques em itálico são meus).

Artigo originalmente publicado na Revista Chronos, n.º 4, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UNIRIO) sob a coordenação do Professor Luciano Maia e por solicitação da Juíza Federal e Professora de Direito Processual Penal da mesma instituição, Simone Schreiber

René Ariel Dotti é professor titular de Direito Penal da Universidade Federal do Paraná. Co-redator dos projetos que se converteram nas leis n.º 7.209 e 7.210/84 (nova Parte Geral do CP e Lei de Execução Penal). Vice-Presidente da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP) e Presidente do Grupo Brasileiro. Ex-secretário de Estado da Cultura do Paraná. Detentor da Medalha Mérito Legislativo Câmara dos Deputados (Brasília, 2007). Advogado.

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