Três possibilidades de relacionamento interamaericano

Há cerca de 15 anos o Brasil vive a experiência do Mercado Comum do Sul, o Mercosul, e há cerca de 10, da Área de Livre-Comércio das Américas, a Alca. Além ou, mais exatamente, a partir dos objetivos puramente econômico-comerciais, as duas iniciativas também perseguem metas políticas: consolidação das influências regionais de alguns países, constituição de contrapesos a potências internacionais, busca de alternativas econômicas e políticas a determinados atores. Todos sabemos que, se tomarmos como exemplo a Alca, teremos, no limite, uma oposição entre as duas grandes economias do hemisfério (descontando-se o Canadá, é claro), ou seja, os Estados Unidos e o Brasil, cujas posições são freqüentemente opostas.

Essa posição de virtual oposição mútua (ou brasileira em relação aos Estados Unidos) nem sempre foi a adotada pela diplomacia brasileira. Aliás, bem ao contrário, já tivemos, em outros momentos de nossa história política, posicionamentos bem diversos, chegando ao alinhamento quase automático apresentado nos anos seguintes à morte de José Paranhos Júnior, o barão do Rio Branco.

Também é interessante notarmos outro fator: na parte Norte do continente americano há uma superpotência, isto é, um país com capacidade de intervir em todas as áreas do planeta; nas partes central e Sul da América, há uma série de países menores e médios, cuja atuação, na melhor das hipóteses, é regional ou setorial. Dessa forma, simplesmente não há como a existência norte-americana ocorrer de maneira incólume para os outros países ou, dito de outra forma, não há como os demais países americanos não levarem em consideração os Estados Unidos em seus cálculos políticos, econômicos e mesmo culturais.

Como dissemos acima, as relações especificamente brasileiras com os Estados Unidos já passaram da oposição velada à franca adesão ("submissão") à política estadunidense e nos últimos anos, em face das negociações da Alca e das mudanças por que as economias mundial e brasileira têm passado, busca-se um meio-termo capaz de articular, da perspectiva brasileira, uma situação de parceria, isto é, de negociação dos temas de interesse, com a superação mais ou menos pacífica e construtiva dos pontos de atrito. Esse meio-termo freqüentemente oscila entre os pólos da oposição desabrida (ao imperialismo, à perda da soberania, ao capitalismo internacional) e da associação à la Equador (assunção dos projetos norte-americanos como se fossem nacionais).

Embora sempre se diga que um terceiro caminho é, mais que possível e desejável, necessário, nem sempre se tem claro como ele seria. Todavia, o Brasil já propôs uma parceria com os Estados Unidos nesses moldes parceria que foi em seguida assumida pela própria superpotência. Referimo-nos especificamente à Operação Pan-americana (OPA), lançada em 1958 por Juscelino Kubitschek, e à versão estadunidense da OPA, a Aliança para o Progresso, lançada em 1961 por John Kennedy.

As semelhanças entre ambas são notáveis, da mesma forma que suas diferenças; para o Brasil e talvez para o mundo contemporâneo, o que interessa mesmo são as diferenças.

O momento em que se vivia era diferente, é certo: internacionalmente, o mundo passava pela Guerra Fria, isto é, pela disputa militar e ideológica entre as duas grandes superpotências: os Estados Unidos defendendo as democracias liberais e a União Soviética, o comunismo. O Brasil, sendo um país americano, estava na órbita dos Estados Unidos. Internamente, o esforço brasileiro era no sentido de modernizar-se, isto é, de industrializar-se. Assim, por uma série de motivos, Juscelino Kubitschek, em 1958, na segunda metade de seu mandato, resolveu propor uma parceria com os Estados Unidos: para evitar que a União Soviética tivesse sucesso no país em difundir a ideologia comunista, resultando, talvez, em uma "revolução popular", o melhor que os Estados Unidos poderiam fazer era auxiliar o Brasil em seu esforço de superação do atraso e da pobreza; em outras palavras, a fim de evitar a vitória do comunismo no Brasil, os Estados Unidos deveriam auxiliar nosso desenvolvimento econômico (no caso do governo de JK, seu Plano de Metas).

Naquele momento em 1958, com a presidência de Dwight Eisenhower os EUA não aceitaram a proposta brasileira. Todavia, em 1961, com John Kennedy na Casa Branca, lançou-se a Aliança para o Progresso, que era um ambiciosíssimo plano decenal de desenvolvimento da América Latina muito mais ambicioso que o brasileiro, diga-se de passagem, pois o nosso contemplava apenas a modernização econômica, enquanto o deles previa as modernizações social e política também.

Entre 1958 e 1961, o que mudou, além, obviamente, dos presidentes de cada país? Ora, em 1959 um advogado conseguiu, com alguns companheiros e após anos de esforços, tomar o poder na maior ilha caribenha, escorraçando um tirano dócil aos Estados Unidos e aproximando-se, em conseqüência, da União Soviética. É evidente o desafio (geo)político que a revolução cubana representou para os EUA e, no contexto da Guerra Fria e após a proposta da Operação Pan-americana, alguns líderes estadunidenses interpretaram a vitória de Fidel Castro como uma comprovação prática das teses de Juscelino Kubitschek daí a proposta da Aliança para o Progresso.

Vários pesquisadores das relações internacionais entre os quais Robert Keohane, nos Estados Unidos, e Janina Onuki, da Universidade de São Paulo já indicaram que, na Guerra Fria, vários países conseguiram vantagens dos Estados Unidos a partir de uma "chantagem geopolítica", isto é, da troca da fidelidade ao bloco democrático por vantagens materiais (financiamentos diversos, material bélico etc.). Ora, em um primeiro momento, claramente os Estados Unidos recusaram essa chantagem da parte do Brasil (e, por extensão, de toda a América Latina), mas, após a revolução cubana, a situação mudou de figura; deixou-se de perceber a América Latina como automaticamente sob a influência norte-americana e passou-se a vê-la como uma área de risco. Essa é a primeira conclusão possível: os países latino-americanos tiveram que forçar uma situação para serem valorizados pelos EUA.

A segunda conclusão possível é a seguinte: além dos dois modelos de relacionamento confronto mais ou menos direto, submissão maior ou menor há, sem dúvida, a possibilidade de um relacionamento frutífero entre ambas as partes, em que se respeitem cada qual suas particularidades. A condição para isso, além de uma certa convergência de interesses, é a qualidade das lideranças: os líderes, especial e principalmente dos Estados Unidos, têm que perceber que um relacionamento positivo entre si mesmos e os latino-americanos é possível e desejável e implementá-lo. Relativamente à realidade atual, creio que não são necessárias muitos comentários…

Gustavo Biscaia de Lacerda é Mestre em Sociologia Política.

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