Há uma campanha para incentivar a doação de órgãos para transplantes. Ela é nacional e este jornal tem dado a sua colaboração, divulgando o assunto e orientando os leitores. Não obstante, há um enorme déficit de órgãos para transplantes e um imenso contingente de pessoas necessitando desesperadamente desse socorro, sob pena de morrerem ou ficarem anos e anos no purgatório da hemodiálise ou na escuridão da cegueira.
De cada oito pessoas que morrem no Brasil, em condições de doarem, apenas de uma se busca fazer transplantes que salvam vidas. O problema é de preconceitos. E preconceitos estultos, falta de comunicação e de iniciativa das famílias das pessoas falecidas. O preconceito prende-se principalmente à idéia, já sobejamente desmentida pela ciência, de que a morte ocorre quando o coração pára de funcionar. Uma idéia tão absurda quanto aquela que atribui àquele órgão o amor, o ódio e tantos outros sentimentos. A morte é morte quando cerebral. Se pára o cérebro, há um cadáver, não importa se este ou aquele órgão continua, ainda, por algum tempo funcionando. E esse funcionamento, às vezes por curtíssimo espaço de tempo, é normal e necessário para que se faça a sua retirada e aproveitamento, no transplante, com sucesso. O doador nada sente, pois está morto.
É intrigante imaginar que num país como o nosso e no mundo atual, quando muita gente opta pela incineração dos corpos porque mais prático e higiênico, neguem a doação de órgãos dos falecidos. Se vão virar cinzas ou alimento para vermes, sob a terra, por que não sobreviverem através de órgãos que continuarão funcionando em outras pessoas, salvando vidas preciosas, a visão de cegos e sofrimentos infindáveis dos que aguardam nas filas a doação por pessoas vivas ou o aproveitamento de órgãos de cadáveres?
Os preconceitos não se sustentam, mas antes se chocam com princípios religiosos. A alma e não o corpo é importante. Principalmente para os católicos, maioria no Brasil. Aliás, seria bom que as igrejas entrassem na campanha, motivando as famílias a autorizar a retirada de órgãos de seus membros falecidos, para transplantes em pessoas que, de outra forma, morrerão ou serão condenadas a anos e anos de sofrimentos.
Há seriedade no processo da fila única de receptores e recentes notícias de interferências políticas para beneficiar pessoas necessitadas, colocando-as com prioridade sobre outras, está gerando severas investigações. O Ministério Público participa de todo o processo, para impedir a venda de órgãos entre vivos, o que evidentemente é um procedimento ilegal e imoral. O sistema não é perfeito, mas a cada dia que passa ganha mais regras que o tornam digno de confiança.
O que talvez tenha sido um erro foi a desistência da exigência de que, em vida, o doador manifestasse por escrito sua vontade de doar, quando morresse. Hoje, a família é que deve autorizar a doação, presumindo-se que age tendo recebido, em vida, autorização do parente que veio a falecer. Aí, esbarram-se em tabus e preconceitos piegas, já para não falar na falta de iniciativa de quem deve autorizar. Se alguém deseja doar órgãos, quando morrer, a família deveria ser obrigada a permitir e compelida a comunicar o fato e o óbito aos órgãos competentes. A dor de perder um ente não desaparece, mas amaina-se, quando se sabe que, com os transplantes, vidas foram salvas, cegos passaram a ver, doentes renais puderam deixar o sofrimento da hemodiálise.