No final dos anos 90 e início dos anos 2000, algumas grandes corporações norte-americanas tiveram seus nomes envolvidos em escândalos financeiros. Essa situação gerou a necessidade do Poder Público dos EUA criar regras mais rígidas em relação à transparência na divulgação de informações sobre as empresas. Um desses dispositivos é a lei Sarbanes-Oxley, que sujeita os executivos norte-americanos a pena de até 20 anos de prisão em caso de violação da lei, mesmo que tal transgressão se dê em subsidiárias da empresa no exterior. Conhecida como SOX, a lei vem-se mostrando eficiente e inspira legislações de outros países, inclusive do Brasil.
O resultado dos processos judiciais contra as empresas envolvidas em escândalos financeiros acabou gerando falências, demissões em massa, perda de participação de mercado das empresas norte-americanas e um grande clamor popular por maior transparência. Em meio à emoção do momento, outras medidas foram tomadas na tentativa de inibir fraudes corporativas, preservar as empresas e empregos americanos e dar uma resposta à opinião pública. Uma delas foi tomada pelo procurador-geral adjunto dos EUA, Larry Thompson, que criou, em 2003, normas internas do Departamento de Justiça para auxiliar os procuradores na decisão de indiciar judicialmente, ou não, uma corporação. As normas, no entanto, mostraram servir mais para preservar a imagem das empresas do que para efetivamente fazer justiça.
De acordo com o Memorando Thompson, como ficou conhecido o infame documento, em caso de acusações contra uma empresa, esta, para que seja considerada “colaboradora” da Justiça e, assim, escape de um indiciamento judicial, deve identificar os executivos responsáveis pelas condutas alegadamente ilegais, bem como, ainda, demiti-los, recusar-se a ajudar em suas defesas (inclusive não permitindo que outros funcionários da empresa testemunhem a favor dos acusados) e não pagar seus advogados, ou apoiá-los financeiramente. Isso tudo além de abrir todas as informações, protegidas pelo sigilo advogado-cliente, que eventualmente possam incriminá-los. Em alguns casos, a empresa deve, ainda, concordar em pagar multas milionárias.
Assim, ao restringir o acesso dos acusados a recursos e testemunhas para sua defesa, fica mais fácil para os promotores provar que eles são os culpados, mesmo que sejam inocentes. Essas diretrizes receberam severas críticas nos EUA, até da própria ordem dos advogados daquele país (BAR), por fazerem “letra morta” da sexta emenda da Constituição norte-americana, que garante o direito de todos os cidadãos à defesa. E mais: por fazerem parte de uma cartilha interna do Departamento de Justiça, e não de uma lei debatida e aprovada pelo Congresso.
O notório caso da Arthur Andersen, levada à ruína financeira devido a um indiciamento criminal nos Estados Unidos, demonstrou que apenas o indiciamento em si já pode tornar-se uma sentença de morte para a empresa, mesmo que tais acusações sejam provadas infundadas no futuro. Desta forma, os dirigentes dessas corporações farão tudo que puderem para evitar o indiciamento criminal da empresa. No entanto, pelas diretrizes do Memorando Thompson, o único caminho para evitar o indiciamento corporativo é ajudar o governo a processar os executivos da própria empresa.
Um caso emblemático foi o da empresa de auditoria e consultoria KPMG que, no início de 2006, concordou em pagar US$ 456 milhões para evitar seu indiciamento, por acusações nunca comprovadas, de evasão fiscal. Mais que isso: demitiu os executivos supostamente envolvidos, mesmo antes de provada qualquer culpa, e passou a ajudar o governo a processar 16 de seus ex-funcionários, entregando todo o material que eventualmente poderia incriminá-los e se recusando a pagar-lhes advogados, ou a colaborar na defesa dos que optaram por se defender.
Meses depois, em audiência de pré-julgamento do caso, o juiz federal Lewis Kaplan considerou que aquele conjunto de diretrizes poderia ser inconstitucional. Ao ouvir de um dos promotores que se as empresas pagassem as defesas de seus ex-funcionários estariam protegendo transgressores, o juiz lembrou a quinta e a sexta emendas da Constituição do país, que garantem, respectivamente, direito à defesa e asseguram que todos são inocentes até ser provado o contrário.
Depois de iniciado o processo contra os ex-funcionários da KPMG, em dezembro de 2006, o procurador-geral adjunto dos EUA, Paul McNulty, revisou o Memorando, tornando as diretrizes – em teoria – menos rígidas. De acordo com as novas regras, as exigências anteriores só poderiam ser feitas caso fosse determinada uma “necessidade legítima”. Na prática, porém, as empresas continuam a ler as entrelinhas daquelas diretrizes e acabam por entregar aos promotores tudo aquilo que eles buscam, pelo temor de virem a ser indiciadas em uma investigação federal.
Depois de mais um ano de processo, em 2007, o juiz Kaplan rejeitou as acusações da Promotoria e absolveu 13 dos 16 ex-funcionários da KPMG que eram investigados. Uma das principais justificativas do juiz foi o fato de não lhes ter sido assegurado o direito à ampla defesa, como manda a Constituição. Finalmente, em dezembro de 2008, a Promotoria permitiu que o prazo final de apelação para a Suprema Corte expirasse, desistindo em silêncio do ruidoso caso.
Como as grandes corporações norte-americanas estão espalhadas por todo o mundo, é inevitável que situações como estas atinjam empregados e executivos também fora dos EUA. Os princípios contidos no Memorando Thompson, mesmo com as revisões já feitas ao documento, podem vir a atingir administradores de subsidiárias brasileiras de companhias norte-americanas, sejam elas companhias abertas, ou não.
Tal incidência sobre os administradores brasileiros pode advir, por exemplo, de um caso em que a subsidiária no Brasil seja acusada de alguma ilegalidade ou fraude e a companhia americana – como forma de evitar um indiciamento criminal em seu próprio país – decida, até preventivamente, denunciar a suposta fraude e os executivos brasileiros supostamente envolvidos às autoridades do Departamento de Justiça, ou outros órgãos reguladores dos EUA.
Dessa forma, a fim de minimizar seus riscos, o administrador brasileiro de subsidiária de empresa norte-americana, ao praticar atos ou adotar procedimentos contábeis que possam vir a ser objeto de eventuais questionamentos no futuro, deverá cercar-se de garantias suficientes de que tais atos ou práticas eram de conhecimento ou, conforme o caso, foram referendados pela controladora americana.
É altamente recomendável, também, que o administrador brasileiro, funcionário de subsidiária norte-americana, ao contratar o seguro de responsabilidade gerencial (“liability insurance”), o faça de uma seguradora qualificada, não aceitando somente aquele oferecido pelo empregador ou aquele cuja apólice corporativa coletiva é emitida nos EUA. Também, por óbvio, não é suficiente e simples “carta de conforto”, que ultimamente tem sido utilizada, pois a sua “garantidora/patrocinadora” acaba sendo exatamente a corporação, cujos interesses passaram a ser contrários.
Por fim, levando-se em conta os abusos processuais perpetrados pela imposição das duvidosas “diretrizes” do Memorando Thompson às empresas norte-americanas, cabe à Justiça brasileira ficar atenta às subsidiarias dessas empresas que, no Brasil, venham a adotar esses mesmos métodos coercitivos, cuja constitucionalidade é questionada até mesmo em seu país de origem, e continuar a garantir os direitos individuais de todos os cidadãos brasileiros eventualmente aprisionados por essa prática pusilânime.
José Augusto Rodrigues Jr é advogado de Direito do Trabalho. jose.augusto@rodriguesjr.com.br