Trânsito. Motorista embriagado. Culpa ou dolo eventual?

 

Entendimento anterior: a questão da responsabilidade por morte causada no trânsito por condutor embriagado sempre foi alvo de discussões nos tribunais. Em tese, não há como se apontar com certeza se há dolo eventual ou culpa consciente. Em recente julgado, por exemplo, o STJ se posicionou no sentido de que considerando a complexidade da causa, correta foi a decisão de primeira instância que levou o acusado a julgamento pelo Tribunal do Júri, aceitando a denúncia do Ministério Público que imputava o dolo eventual (HC 199.100/SP).

Entendimento recente: o STF, no entanto, ao julgar o HC 107.801/SP (setembro de 2011), inovou no tema. Seguindo o voto condutor do Min. Luiz Fux, a Primeira Turma concluiu que o homicídio na forma culposa na direção de veículo automotor prevalece se a capitulação atribuída ao fato como homicídio doloso decorre de mera presunção perante a embriaguez alcoólica eventual.

 

A responsabilização dolosa pela morte em direção de veículo automotor, estando o condutor embriagado, pressupõe que a pessoa tenha se embriagado com o intuito de praticar o crime. Este foi o entendimento que fundamentou a concessão da ordem no HC 107.801/SP (06/09/11), pela Primeira Turma do STF, writ relatado pela Min. Cármen Lúcia.

A concessão da ordem consistiu em desclassificar a conduta imputada ao acusado de homicídio doloso para homicídio culposo na direção de veículo. O motorista, ao dirigir em estado de embriaguez, teria causado a morte de vítima em acidente de trânsito.

A relatora teve voto vencido, já que a maioria dos ministros da Primeira Turma seguiu o voto-vista do ministro Luiz Fux, determinando-se assim a remessa dos autos à Vara Criminal da Comarca de Guariba (SP), pois o acusado já havia sido pronunciado para julgamento pelo Tribunal do Júri.

Para a defesa o homicídio na direção do veículo, estando o condutor embriagado, revelaria o caráter culposo do crime por meio de imprudência, não se podendo falar sequer em dolo eventual.

Para o Min. Luiz Fux: “o homicídio na forma culposa na direção de veículo automotor prevalece se a capitulação atribuída ao fato como homicídio doloso decorre de mera presunção perante a embriaguez alcoólica eventual”. Conforme o entendimento do ministro, a embriaguez que conduz à responsabilização a título doloso refere-se àquela em que a pessoa tem como objetivo se encorajar e praticar o ilícito ou assumir o risco de produzi-lo. – STF.

Tecnicamente a decisão do STF está correta. A embriaguez, por si só, não significa dolo eventual. Dolo eventual existe quando o sujeito (a) representa o resultado, (b) aceita o resultado e (c) atua com indiferença frente ao bem jurídico. O estar embriagado não significa automaticamente dolo eventual. Cada caso é um caso. O que não se pode é partir de presunções contra o réu. Isso é inadmissível em Direito penal.

O Brasil já é, agora, o terceiro país que mais mata no trânsito (cf. www.ipclfg.com.br). Passamos os EUA, com cerca de 40 mil mortes por ano. Há, portanto, também nessa área, uma demanda populista punitivista muita forte. Isso vem conduzindo muitas autoridades a aceitarem dolo eventual em muitos acidentes. Ocorre que dolo eventual é uma categoria jurídica muito precisa. É de se lamentar que a pressão popular e midiática venha a interferir nessas questões puramente dogmáticas. É incrível como a realidade criminal vem se impondo sobre a Teoria Geral do Delito ou da Pena. Os alemães demoraram mais de 150 anos para construir um mundo de conceitos precisos (ou relativamente precisos) no âmbito penal. A mídia e a população emocionada muitas vezes tentam acabar com esses conceitos. Direito é direito, sociologia é sociologia. As decisões judiciais não podem ficar ao sabor do populismo penal. Tampouco se justifica a sanção penal uma imposta para os graves acidentes de trânsito (penas alternativas). Não sendo também o caso de se jogar esse condenado ao “cadeião”, só resta o meio termo: pena de prisão domiciliar com monitoramento eletrônico. Mas isso depende de mudança legislativa.

 

Luiz Flávio Gomes é Jurista e cientista criminal. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto de Pesquisa e Cultura Luiz Flávio Gomes. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Acompanhe meu Blog. Siga-me no Twitter. Encontre-me no Facebook.

 

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