?Tijolo por tijolo em um desenho (quase) lógico: vinte anos de construção do projeto democrático brasileiro? é a dissertação de mestrado da professora Eneida Desiree Salgado aprovada com mérito dez pela banca julgadora composta por Romeu Felipe Bacellar Filho, professor de direito administrativo da UFPR e da PUC/PR, Regina Macedo Nery Ferrari, professora de direito constitucional da UFPR e da UTP/PR e Rogério Gesta Leal, desembargador do TJ/RS, professor de Teoria Geral do Estado, Direitos Humanos e Hermenêutica Jurídica na Universidade de Santa Cruz do Sul. Eneida é professora de Direito Constitucional e Direito Eleitoral do Centro Universitário Positivo, graduada e agora mestre em Direito pela UFPR, esclarece que escolheu o tema de sua tese ?a partir da idéia da constatação da discrepância entre os anseios democráticos do final do período de ditadura e a prática democrática atual. Procurei averiguar o conteúdo do projeto democrático brasileiro, trazido pela população e pelos intelectuais, debatido na Assembléia Nacional Constituinte e inserido na Constituição. Finalmente, analisei o que foi, o que poderia ter sido e o que pode vir a ser o substrato normativo para a democracia brasileira?. Eis os pontos centrais do trabalho, segundo as observações da professora Eneida:

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Prática democrática deficitária: Destaca que ?a idéia inicial para a pesquisa surge de uma constatação. Uma Constituição, e com mais razão uma Constituição ?redemocratizante?, traz consigo um projeto de democracia que, face à normatividade das disposições constitucionais, deve ser obrigatoriamente desenvolvido e realizado. Assim se verifica na Constituição brasileira de 1988. Não obstante, a prática democrática da sociedade brasileira mostra-se repleta de entraves decorrentes de sua regulamentação e da ausência de entronização do princípio da soberania popular em seu viés participativo. Estamos diante, então, de um projeto democrático constitucionalizado e, portanto, imperativo, e de uma prática democrática deficitária. Para ressaltar essa discrepância e buscar possíveis soluções para a sua superação pareceu-me necessário analisar a construção do projeto democrático, trazendo concretude ao seu conteúdo?.

Caminho percorrido: Eneida explica o caminho percorrido para seu trabalho acadêmico: ?A análise feita passa, rapidamente, pelos questionamentos acerca da ilegitimidade da ordem constitucional anterior e pela demanda popular por eleições diretas para presidente da República, primeiros esboços de uma nova ordem democrática. Detém-se nos trabalhos constituintes, iniciando com as propostas apresentadas pelos estudiosos e com a mobilização popular, manifestada pela organização de grupos de debate sobre o conteúdo desejado da Constituição, elaboração de cartilhas e envio de sugestões aos futuros constituintes. As sugestões dos cidadãos encaminhadas à Constituinte por formulários dos Correios trazem à investigação uma aura de afeto. De difícil pesquisa, pois carentes de uma sistematização, os textos preenchem algumas páginas. Sua leitura é fascinante e reflete, de maneira quase mágica, o envolvimento popular na construção da ordem constitucional democrática. É comovente ver a soberania popular iniciar seu discurso desculpando-se por não entender muito de política e depois cumprir seu papel, elencando o que considera mais importante para configurar no texto constitucional?.

Aprimoramento da prática democrática: Definido o projeto constitucional, sua efetividade é dado fundamental: ?Passa-se a tratar do projeto constitucionalizado e do seu desenvolvimento. Discorre-se sobre os contornos finalmente dados ao projeto e como os poderes constituídos o fazem efetivo ou o esvaziam. Depois disso, a pesquisa aponta alguns caminhos para o aprimoramento da prática democrática. Poucas destas propostas implicam mudanças no texto constitucional, e as que o fazem não desvirtuam antes recuperam o espírito da Constituição. Procurou-se evidenciar o conteúdo possível e o potencial transformador do projeto democrático brasileiro, demonstrar o já conquistado e indicar as possibilidades ainda não exploradas. Buscou-se contribuir para o esclarecimento dos contornos do termo ?democrático? do Estado democrático de Direito do artigo 1.º da Constituição de 1988 e para torná-lo efetivo?.

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O enfoque político: ?O recorte metodológico da pesquisa revela seus limites. Na impossibilidade de serem analisados todos os ângulos da democracia, decidiu-se pelo enfoque político, com a exclusão possível apenas no campo da investigação científica dos seus aspectos social, econômico e cultural. Ainda, dentro do matiz político, define-se o foco principal na análise dos instrumentos institucionais de controle do exercício do poder e de participação popular na tomada de decisões políticas. Essa escolha não reflete uma concepção estreita e formal da democracia. Indica, apenas, o caminho que julgo o mais adequado para aproximar o projeto democrático da realidade. Explicitam-se os mecanismos normatizados e os que foram deixados de lado, evidenciando seu conteúdo e seu sentido. Assim colabora-se com seu aperfeiçoamento e com a sua utilização cotidiana, e, conseqüentemente, criam-se condições favoráveis à incorporação dos princípios democráticos e ao surgimento de uma consciência política?.

Refletindo a realidade brasileira: ?Optou-se, ainda, por restringir a pesquisa aos autores nacionais. Não se pretendeu escrever sobre a democracia como conceito abstrato, ou apresentar uma noção que pudesse ser aplicada a qualquer realidade estatal. A investigação exigia contribuições teóricas que refletissem a realidade brasileira e permitissem sustentar a possibilidade da construção de um projeto democrático de aplicação imperativa pelo poder constituinte. E soberania popular, o poder constituinte, a representação política e a normatividade da Constituição para os fins aos quais se propõe a pesquisa são analisados suficientemente pelos autores nacionais. A contribuição desta pesquisa para a comunidade acadêmica, penso, reside na base de dados utilizada. Fazem parte da dissertação obras que descrevem o momento das diretas já, que apresentam sugestões e projetos para a Constituição e que analisam a legitimidade da Assembléia Constituinte, além das sugestões dos cidadãos e das discussões do processo constituinte?.

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Conquista da cidadania: ?A análise da construção do projeto democrático brasileiro faz-me concluir que a Constituição de 1988 é legítima, traz um projeto democrático a ser realizado e deve ser defendida como conquista da cidadania. Confesso que esta visão, intuitiva a princípio, não passou inquestionada pela realização da pesquisa. Os problemas surgem já na convocação da Assembléia Nacional Constituinte, feita por emenda à Constituição que se desejava substituir. Os constituintes são deputados e senadores, o que implica o reconhecimento da estrutura de Estado e poder então existentes e garante a sua permanência como representantes políticos após a elaboração da Constituição. Participam do processo senadores eleitos em 1982, sem mandato constituinte. O Poder Executivo interfere nas discussões e discorda publicamente das decisões tomadas. Mais: a leitura das atas da Assembléia Nacional Constituinte revela que a falta de consciência política alcança além da população também a representação política. Os deputados e senadores, investidos nominalmente do poder constituinte, não percebem seu papel na história, não sabem vestir-se representantes da soberania. Sequer incorporam a denominação de sua investidura. Sua atuação mostra-se condicionada pelo instrumento convocatório e freqüentemente conformada por acordos partidários fora das atas?.

A voz do povo: Remete a análise da professora a um ponto central, a participação do povo: ?Mas o contexto histórico e o compartilhamento de um ideal democrático temperam essas ressalvas e permitem a institucionalização de canais de participação popular. O povo, que já havia gritado desordenadamente na Campanha das Diretas, volta a usar sua voz durante os trabalhos constituintes, desta vez com previsão normativa e espaço de discussão. Os liberais da nação preocupam-se com tamanha liberdade e defendem a superioridade da representação sobre a participação. Já é tarde. A voz das ruas preenche os correios, os computadores, as galerias e os corredores da Assembléia Nacional Constituinte e se faz ouvir, ainda que filtrada. Essa interferência do povo, sua participação na construção do projeto democrático e do texto constitucional imprime sua marca na Constituição de 1988, que traz seus anseios, seus desejos, seus conflitos. Esta Constituição assim elaborada e este projeto democrático assim construído ainda servem. O que os ameaça continua sendo a representação política. Que, reunida em Assembléia Nacional Constituinte não se comporta como exercente do poder constituinte, mas como poder constituído decide fazer cotidianamente uma nova Constituição, sem a presença nem a anuência do soberano. Se a Constituição hoje é outra não aquela escrita por 559 constituintes sob o olhar atento do povo atuante e organizado, porém uma distinta, proveniente dos escuros corredores das Casas Legislativas e das conversas de gabinete ainda carrega consigo seu projeto democrático. Com espaço para a sua realização, e capaz de corrigir as distorções ocasionadas pelas reformas. Permanece na Constituição o reflexo do ideal democrático. Permanecem em seu texto a soberania popular, a democracia participativa e seus instrumentos. Resta recheá-los de realidade?.

Edésio Passos é advogado. E.mail:edesiopassos@terra.com.br