Teorias da continuidade delitiva

O artigo 71 do Código Penal consagra o chamado "crime continuado". Segundo o Diploma Legal, a continuidade delitiva ocorre quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie, sob condições homogêneas de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes. Nestes casos, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro.

À primeira vista, o tema parece não despertar maior perplexidade. Com efeito, a redação legal se afigura bastante clara, dispensando digressões exegéticas de hermenêutica doutrinária. Sem embargo de pirotecnias verbais, o legislador aparenta clareza e limpidez ao esposar os requisitos do crime continuado, de modo nítido e hialino.

Em última análise, entrementes, a matéria revela polêmica. E muita. Malgrado aparente transparência legislativa, a matéria é povoada de sérias discussões de ordem doutrinárias e respeitáveis divergências de natureza jurisprudencial.

Por trás de tanta claudicância, repousam, subjacentes, as teorias acerca do crime continuado. Na medida em que varia a teoria adota, diverge, na mesma proporção, a interpretação extraída do artigo 71 do Código Penal. Destarte, urge vasculhar o âmago nevrálgico da questão, de onde irradia tanta polêmica.

Compulsando-se a doutrina, infere-se que o painel teórico acerca da continuidade delitiva se bifurca em duas dimensões.

Na primeira dimensão, três teorias dominam o tema: (a) a teoria da unidade real considera que as várias infrações cingem-se, ontologicamente, a um único delito, como partes de um todo, sob o amplexo de um dolo unitário; (b) a teoria da ficção jurídica parte do pressuposto de que, no plano ontológico, as infrações são distintas e separáveis entre si, porém, no plano jurídico, constituem uma continuidade, por força de uma ficção artificialmente criada por lei; e (c) a teoria da unidade jurídica, por derradeiro, modera as duas anteriores, considerando que a continuidade delitiva não é nem um único delito, como sugere a primeira teoria, nem tampouco uma ficção jurídica, como pretende a segunda, mas sim uma terceira modalidade de infração, o delito de concurso.

Na segunda dimensão, outras três teorias povoam a matéria: (a) a teoria puramente subjetiva, segundo a qual o critério de aferição da continuidade delitiva reside, unicamente, na existência de uma unidade de desígnio a amalgamar as infrações, pouco importando os elementos objetivos da realidade empírica; (b) a teoria puramente objetiva, em diametral oposição, apresenta o crime continuado a partir de dados objetivos homogêneos colhidos das circunstâncias fáticas, independentemente do elemento subjetivo; e (c) a teoria objetivo-subjetiva, pela qual, a continuidade delitiva deve reunir, necessariamente, tanto o plano objetivo, quanto o plano subjetivo, desde a homogeneidade de circunstâncias fáticas, até a unidade de desígnios.

Segundo a Exposição de Motivos do Código Penal, o legislador se inspirou em dupla inclinação teórica: na primeira dimensão, adotou a teoria da ficção jurídica; na segunda dimensão, acolheu a teoria puramente objetiva.

Todavia, apesar da expressa concepção teórica do legislador, estampada na Exposição de Motivos do Código Penal, a doutrina e a jurisprudência não se aquietaram.

No plano doutrinário, a divergência é acirrada. De um lado, respeitável minoria capitaneada por Rogério Greco, Fernando Capez e Damásio E. de Jesus, entre outros, adota a teoria objetivo-subjetiva. Na lição de Greco(1), "é a mais coerente com o nosso sistema penal". Para Capez(2), "não aceitamos que o crime continuado se configure a partir de meras circunstâncias objetivas, sem que a continuação decorra da vontade do agente". Segundo Jesus(3), "para a configuração do crime continuado, não é suficiente a satisfação das circunstâncias objetivas homogêneas, sendo de exigir-se além disso". De outro lado, esmagadora maioria, representada por Heleno Claudio Fragoso, René Ariel Dotti e Julio Fabbrini Mirabete, entre outros, adota a teoria puramente objetiva. No ensinamento de Fragoso(4), "não se requer que haja qualquer dolo de conjunto ou propósito deliberado de praticar sucessivamente fatos delituosos", pois o CP brasileiro "exclui do conceito elementos subjetivos". Para Dotti(5), "basta a ocorrência dos elementos constitutivos exteriores previstos pelo art. 71 do CP", o que "dispensa unidade de ideação". Na mesma esteira, Mirabete(6) pondera que o crime continuado é "uma realidade apurável objetivamente, através da apreciação dos elementos constitutivos exteriores, independentemente da unidade de desígnio".

No plano jurisprudencial, a controvérsia atinge as Cortes Superiores. De uma banda, o Superior Tribunal de Justiça tem entendido que a caracterização do crime continuado depende do elemento subjetivo, além da homogeneidade objetiva (RSTJ 56/360). De outra banda, o Supremo Tribunal Federal pacificou entendimento de que bastam os elementos objetivos para a configuração da continuidade delitiva, independentemente do fator subjetivo (RT 741/564).

A claudicância teórica tem reflexos na vida empírica. Enquanto a celeuma aguça divergências hermenêuticas, a sorte e o destino da vida de seres humanos ficam à mercê de uma exegese vacilante. Ora, se a própria Exposição de Motivos do Código Penal (º 59) já estampa, de plano, que o legislador adotou a teoria puramente objetiva, então, a exigência de qualquer elemento subjetivo, para a caracterização do crime continuado, é contra legem, porquanto desautorizada por lei, de forma expressa. A contrário senso, seria exigir mais do que a própria lei, para o reconhecimento de um beneplácito legal.

No plano das locubrações acadêmicas, há liberdade para a adoção de qualquer teoria, pois todo debate estimula o pensamento científico. Porém, no plano da experiência pretoriana, o vacilo da jurisprudência causa atroz insegurança jurídica, mormente quando se tem em conta a disposição expressa da Exposição de Motivos que se filia à teoria puramente objetiva.

Notas:

(1) GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2003, p. 665.

(2) CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Vol. I. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 479.

(3) JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. vol. I. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 607.

(4) FRAGOSO, Heleno Claudio. Lições de Direito Penal.16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 443

(5) DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 538.

 (6) MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 317.

Adriano Sérgio Nunes Bretas é advogado criminal e pós-graduando em Direito Penal e Criminologia pela UFPR

bretasadvocacia@yahoo.com.br

Grupos de WhatsApp da Tribuna
Receba Notícias no seu WhatsApp!
Receba as notícias do seu bairro e do seu time pelo WhatsApp.
Participe dos Grupos da Tribuna
Voltar ao topo