Superprivilégio de certos credores na recuperação judicial

A Lei 11.101/05, que trata da falência e da recuperação de empresas e empresários, traz em seu texto normativo algumas situações no mínimo curiosas, ao estabelecer, por exemplo, verdadeiros superprivilégios, por assim dizer, a determinada classe de credores. Cabe aqui uma brevíssima incursão a respeito de tema interessante, sendo que o exegeta perceberá de forma bastante simples que o novel texto normativo contém certas incongruências; trata os iguais de forma totalmente desigual e cria, a bem da verdade, uma cortina de fumaça para que deixe ele, o hermeneuta, de perceber claramente quais são aqueles credores mais privilegiados no âmbito do processo de recuperação judicial. De fato, basta analisar com cautela e isenção de ânimo todos os dispositivos legais para chegar a uma indelével conclusão: além de a Lei 11.101/05, no que diz especialmente com a recuperação judicial, ser dirigida a quem atravessa crise considerada como momentânea, mas que por outro vértice tenha realmente estofo mínimo financeiro para fazer frente a várias despesas necessárias, como já exposto algures, impende destacar que o legislador optou, a bem da verdade, por excluir do âmbito do processo recuperatório determinados entes, sujeitando outros a este mesmo processo. Analisada a Lei 11.101/05 com prudência e racionalidade perceberá o intérprete, em primeiro lugar, que o reivindicante somente poderá requerer judicialmente a restituição de bens em sede de falência. Por mera política legislativa, optou-se por excluir a possibilidade de tal procedimento no âmbito do processo de recuperação judicial, justamente para que se conceda à empresa em crise mecanismos mínimos necessários para que se busque o soerguimento. Evidentemente, se o espírito da lei é que se concedam condições para que haja o retorno ao mercado competitivo, é não menos certo que pedido de restituição no âmbito da reorganização certamente frustraria qualquer expectativa de superação da crise considerada [em tese] como momentânea. Note-se ainda que na vigência do Dec.-Lei 7.661/45 aquele juridicamente interessado tinha ao seu dispor o procedimento da restituição para reaver bens, inclusive no âmbito da concordata preventiva [sabendo-se que esta somente albergava os quirografários!], sendo que esse fator pode ser um motivo, dentre tantos, para o insucesso de tal favor legal. Ora, se o espírito da lei é que realmente se envidem esforços para o soerguimento daquele em crise, procurando preservar o ente, os postos de trabalho e as relações encetadas com fornecedores, com o próprio Estado etc., é de todo evidente que inexistiria qualquer sentido em pensar-se em pedido de restituição no âmbito da reorganização judicial. De outra banda, muito embora tal incidente somente possa existir na seara falimentar, nota-se que há válvulas de escape a determinados credores, a fim de que possam reaver seus créditos antes dos demais, inclusive antes e em condições mais favoráveis até mesmo em relação aos trabalhistas e credores por acidente de trabalho. Mas para se chegar a tal conclusão, caberá ao hermeneuta proceder a uma análise pormenorizada do novel texto normativo; caberá a ele, o arguto intérprete, observar o método sistemático, verificando no final do túnel que de fato há superprivilégio a alguns também em sede de recuperação judicial. Um pequeno parêntese há de ser feito. Além de o projeto de lei ter ficado dormitando por durante longos anos, resta de todo evidente que perdeu-se a grande oportunidade de elaboração de um texto normativo enxuto, moderno e principalmente consentâneo com a realidade nacional. A partir do momento em que valeu-se de lei alienígena para o fim de aqui implantar a lei de recuperação de empresa, tem-se como certo a perda da oportunidade de avanço. O modelo legislativo aqui apresentado não tem o norte almejado, principalmente pela classe empresarial brasileira. Ora, é mais do que evidente que não se recupera empresa sem que haja cedência recíproca de credor e devedor; não se recupera empresa em crise sem que haja substancial reforma na legislação tributária, não se recupera empresa que atravessa dificuldade sem que haja ambiente propício para colocar em prática plano de recuperação tendente ao soerguimento. Por fim, não se recupera empresa sem que haja convergência de pensamento de todos os envolvidos no processo de reorganização judicial. Aliás, parte da hodierna entende que a solução para a crise deveria ser apresentada, a princípio, pelo próprio mercado no qual se insere a entidade, mas esse tempo cabe noutro lugar. Um segundo parêntesis: falta no país razoável aprimoramento nas políticas fiscais; há necessidade de incentivo ao empreendedorismo, e jamais se deve olvidar que a empresa é um ente importantíssimo para que se busque o crescimento da economia nacional e a inserção do país naquilo que se denomina de primeiro mundo.

II

Perlustrando o novel texto normativo – apenas no tocante ao processo de recuperação judicial -, o exegeta depara-se com o seguinte ponto nevrálgico: muito embora inexista a possibilidade [a princípio] de o interessado juridicamente se valer do pedido de restituição, até para não frustar os objetivos recuperatórios buscados pela lei, nota-se que determinados entes [credores] estarão fora das linhas do processo de reorganização judicial. Ou seja, em primeiro lugar, a instituição financeira detentora de contrato de câmbio para exportação, provando que adiantou recursos financeiros ao devedor poderá acioná-lo para reaver o numerário. De outro lado, o proprietário fiduciário; o arrendador mercantil; o proprietário ou promitente vendedor de bem imóvel [e cujos instrumentos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade] e o proprietário em contrato de venda com reserva de domínio também estarão fora do âmbito da recuperação judicial. Nesses casos prevalecerão os direito de propriedade sobre o bem e observar-se-ão as cláusulas contratuais, de acordo com a legislação própria. Sabendo-se que, deferido o processamento do favor legal, nenhum credor poderá acionar o devedor dentro do prazo de 180 [cento e oitenta] dias, a contar da assinatura da decisão judicial que acolhe o pleito, valendo tal lapso temporal como verdadeiro fôlego para que o devedor tente se restabelecer, não menos certo que após esses mesmos 180 dias ficarão os interessados livres, totalmente descompromissados para agir em face do devedor. O mesmo ocorre com os credores antes referidos, que, decorrido o prazo de suspensão, também poderão acionar o devedor a fim de reaver o que lhes é de direito. Então, muito embora inexista na seara da recuperação judicial o chamado pedido de restituição, nota-se que o proprietário fiduciário, o arrendador mercantil etc., também terão abertas as portas para a retomada imediata do bem, inclusive mediante liminar, o que sem sombra de dúvida pode prejudicar o andamento do processo de recuperação judicial. Poder-se-ia argumentar que igual direito é concedido ao Fisco, ao credor trabalhista e a outros que demandem quantia ilíquida, que têm o direito de ingressar com as medidas judiciais cabíveis em face do devedor recuperando. Mas qual seria a diferença básica e insofismável entre estes e o credor fiduciário, por exemplo? Enquanto que na execução fiscal ou mesmo na demanda trabalhista o máximo que poderá haver, a princípio, é a penhora sobre bens da recuperanda, quando o caso é de alienação fiduciária ou de arrendamento mercantil, a situação muda de figura, pois poderá haver a necessidade de entrega imediata do bem que serve de garantia ao credor, considerando a viabilidade de decisão liminar. Então, há tratamento desigual em relação a determinados credores no âmbito da recuperação judicial. Cabe meditar a respeito, a fim de verificar, de fato, quais são os horizontes em relação à Lei 11.101/05. Com efeito, não se pode examinar o texto normativo com certa ataraxia e o hermeneuta tem ferramental próprio a nível constitucional para manusear o novel regramento a respeito da falência e da reorganização de empresa. Aliás, na esteira de Michel de Montaigne, as leis extraem da aplicação e do uso sua autoridade; é perigoso levá-las de volta a seu nascimento; elas se avolumam e enobrecem ao rolar, como nossos rios:acompanhai-os remontando até sua fonte e esta não passa de um pequeno olho d?água mal reconhecível, que assim se dignifica e se fortalece ao envelhecer(1). Nunca se deve olvidar que o Direito está acima da lei.

Nota:

(1) Os Ensaios Livro II. São Paulo:Martins Fontes, 2006, p. 376.

Carlos Roberto Claro é professor assistente de direito societário e falimentar das Faculdades Integradas Curitiba; mestrando em direito empresarial pela mesma instituição de ensino e membro do American Bankruptcy Institute (USA).

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