Somos leituras e ação

Ouvir escritores é aprendizagem na maior parte das vezes, porque sua experiência com a escrita se desvenda nas palavras ditas e na maneira como interagem com os ouvintes. A curiosidade toma conta de qualquer leitor quando, diante do autor, pode indagar as motivações, os porquês, os subentendidos, a emoção, os anseios. Mais do que a vontade de invadir a privacidade, há no leitor a necessidade de encontrar na gênese, na fonte do escrito talvez a mesma intenção ou os sentidos que conseguiu aplicar ao texto que leu. Saber de onde saíram os personagens, quanto da biografia está exposta ou escondida nos detalhes da história. As indagações do leitor correspondem, quase sempre, a um movimento de re-encontro, de diálogo para certificação e segurança.  

Certificação que assegure os sentidos que atribuiu ao texto. Segurança que lhe traga a certeza de que, por mais que o texto flutue, apresente dificuldades ou lhe pareça obscuro, a compreensão que logrou alcançar encontra respaldo no autor-criador.

Com a proliferação de autores de literatura infantil e juvenil nos últimos 40 anos e com a iniciativa dos professores e escolas em promover a aproximação dos alunos com a leitura de livros, a visita de autores passou a fazer parte do programa de estímulo à leitura. Com bons resultados, quase sempre.

Uma das conseqüências mais imediatas é a constatação de que o autor tem vida e corpo semelhantes a uma pessoa normal. A segunda corresponde aos sentidos atribuídos aos textos, que podem não corresponder às intenções do autor. A terceira traz a consciência de que escrever um livro está ao alcance de alguns alunos.

Professores não desperdiçaram nenhum dos três resultados. Em especial, transformaram o primeiro deles em acontecimento dentro da escola, com direito a festa e tietagem.

Há escritores de todos os tipos, posto que, humanos que são, refletem a variedade da espécie. Há os tímidos, os presunçosos, os didáticos, os distraídos, os vaidosos, os inseguros, os sucintos, os prolixos, os de fala poética, os mercenários… Quem os convida para falar num evento corre riscos, como os das previsões de futuro: ?A influência de Júpiter anuncia…?, ?Com a entrada de Peixes em seu signo…?. Por mais que se pesquise sobre presença e efeitos da fala do convidado-escritor, nunca se sabe que circunstâncias podem interferir nela (físicas, de ambiente, psíquicas, disposição anímica, perguntas mal elaboradas, público inadequado). Se forem negativas, água abaixo vão os preparativos, os anúncios, as despesas. Mas quando tudo funciona, a literatura agradece. O público reage não apenas nos aplausos, sobretudo, no desejo de ler.

Em evento recente do Programa de Leitura da Repar-Petrobras, em Araucária, os professores puderam conhecer e ouvir Alcione Araújo, cronista, romancista, dramaturgo, roteirista de TV e cinema. Sua fala foi uma aula sobre cultura, arte, educação e brasilidade. Principiou sua exposição afirmando: ?Nós somos leituras: somos constituídos pela leitura. Escrever tem algo de maternidade: cria algo nos outros.? A seguir, agradeceu aos professores que o educaram: ?Os professores me deram tudo: me apontaram os caminhos, me despertaram a curiosidade.? Não se tratava de palavras para agradar os ouvidos do público, porque as idéias expostas na seqüência se encaminharam na mesma direção: sua graduação em Filosofia e a dedicação à literatura confirmaram a leitura e a criação de textos como formas de satisfazer a curiosidade, que é a fonte indispensável do conhecimento: ?Hoje, há muito ensino e pouca educação. Educação é pegar na mão e ir junto. Sobretudo, criar no estudante, a OBSTINAÇÃO DE PERGUNTAR?.

A atuação dos educadores se amplia para a cultura. Alcione Araújo expôs então, e mais uma vez, a incrível história de um País que, tendo abandonado a formação jesuítica clássica, fundadora da educação brasileira, desacreditando, assim, uma cultura erudita, ao mesmo tempo, desprezou as raízes da memória cultural, apagou sua cultura popular de raiz (que inclui índios e brancos): ?Nossas escolas não ensinam a história da nação, mas a história do poder.? Neste apagamento, o País se submeteu à forma imperiosa da cultura de entretenimento, comandada pela televisão e por seus produtos correlatos (revistas de variedades, sobre fofocas a respeito de artistas, sobre assuntos supérfluos, passageiros e da mais absoluta homogeneidade de pensamento). Expostos a essa cultura rasteira e descartável, os brasileiros poderiam encontrar uma saída e redenção na educação de qualidade. Que é rara. ?Precisamos constituir o mosaico de nossas origens. Ainda não construímos nossa memória comum. A pluralidade do que somos também é nossa riqueza. Somos, porém, desleixados com nosso passado. A escola pergunta só o futuro: o que queremos ter ou ser.?

No entanto, e apesar de todos os prognósticos negativos, Alcione Araújo afirmou sua fé na educação: ?Está nas mãos da educação restaurar, resgatar.? Reconheceu os riscos de uma formação cidadã: ?Se você souber o que você quer ser, pode querer coisas a que você não tem direito.? Mesmo assim, vale a pena, pois a educação pode reativar a cultura erudita, reavivar as raízes da identidade de nosso povo e ajudar a construir nos brasileiros defesas para opor-se à força avassaladora da cultura midiatizada do entretenimento.

Professores-educadores ouviram e concordaram. Secretários de educação presentes ouviram e concordaram. Cidadãos e cidadãs ali representados aplaudiram. Essa defesa do papel formador da escola poderia chegar a ouvidos governamentais e a outros segmentos que compõem a sociedade? Certamente: esta é a função social dos educadores neste momento de crise de valores humanos. Estamos convocados a unir vozes e ações às palavras de Alcione Araújo e fazer concretizar-se em sala de aula a importância da leitura e da educação.

Há visitas de escritores que fazem renascer a crença na construção de uma nova narrativa e de uma outra poética docente, pedagógica e educadora.

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