Nas últimas semanas do governo FHC foi debatida a constitucionalidade do decreto que autorizava à Receita Federal acessar informações bancárias de pessoas que tivessem renda mensal superior a R$ 5 mil mensais. Após manifestações de diversos setores da sociedade no sentido de sua inconstitucionalidade, essa norma acabou sendo revogada. A aludida revogação não foi tão alardeada fora do meio jurídico, mas guarda certa relação com os problemas do Poder Judiciário e com uma das principais propostas para a sua reforma: a súmula vinculante.

De acordo com o projeto, uma vez editada por um dos Tribunais superiores, espera-se que os juízes de instâncias inferiores – e também a Administração Pública, conforme o caso – ajam de acordo com o enunciado na súmula. Pretende-se, com isso, evitar que se propaguem ações judiciais com o mesmo fundamento. O entendimento proclamado na súmula se tornaria obrigatório, impondo-se aos juízes de instâncias inferiores e ao próprio Estado, que daquele entendimento não poderiam se desviar.

O que distingue as situações mencionadas?

No caso citado no início do texto a sociedade argumentou e convenceu a autoridade competente de que a norma jurídica criada violaria a Constituição Federal. Quanto à súmula vinculante, no entanto, não haverá espaço para o debate e a argumentação, senão dentro dos limites dos Tribunais que as criarem. A súmula vinculante impõe sem se ocupar de convencer.

É duvidoso que a súmula vinculante impeça o manejo de recursos judiciais dirigidos pelas partes às instâncias superiores. Sempre haverá um “senão”, algum ponto que terá passado ao largo da súmula. De outro lado, já há mecanismos na legislação que permitem a rejeição imediata de recursos contrários às súmulas dos Tribunais superiores, e até mesmo a imposição de sanções àqueles que insistem em litigar contrariamente à tese sumulada.

Mas, se semelhantes mecanismos jurídicos já existem, por que não são eficazes? Porque os temas jurídicos são controvertidos não apenas perante os juízes de instâncias inferiores, como seria de se supor. As mais variadas questões são objeto de controvérsia dentro dos próprios Tribunais superiores, o que autoriza à parte interpor o recurso para tentar fazer valer a sua tese. A propósito, sendo a tese viável, praticamente se impõe ao defensor da parte a interposição do recurso, pois o advogado deve tentar obter, dentro dos limites da ética, da moral e da Lei, o maior proveito possível para aquele que representa.

Não bastasse, em tempos recentes têm-se multiplicado decisões judiciais fundadas em verificação apenas superficial da existência do direito alegado, o que é visível na mídia pelas freqüentes liminares concedidas pelos próprios Tribunais superiores. Não raro, estas decisões contradizem decisões anteriores que resolveram conflitos parecidos.

Um exemplo recente: em 1999, o Estado de Minas Gerais tentou obter junto ao STF, sem êxito, liminar para suspender o bloqueio de suas contas por falta de pagamento de dívidas à União. Melhor sorte teve, recentemente, o Estado do Rio de Janeiro, que obteve liminar em situação parecida perante o STF. Obviamente, a União recorreu contra esta decisão, e isto por uma razão muito simples: se o STF já se manifestou de modo diverso em situação semelhante, espera-se que haja uniformidade entre as decisões proferidas pelo referido Tribunal.

Note-se que, no caso, estão a litigar a União e um dos Estados. Como é curial, se nem mesmo os órgãos da Administração Pública respeitam as decisões judiciais – ou, inversamente, se a decisão judicial não convence tais órgãos quanto ao seu acerto – é natural que o exemplo seja seguido pelo cidadão comum, e este se sinta à vontade para não observar as orientações firmadas pelo Poder Judiciário.

O assunto, portanto, diz respeito à credibilidade, à autoridade, à respeitabilidade das decisões proferidas pelos órgãos do Poder Judiciário perante os cidadãos, perante os demais órgãos do Estado e, ainda, dentre os próprios juízes das instâncias inferiores. A questão que se coloca é a de se saber se uma orientação jurisprudencial deve se firmar pela autoridade de seus argumentos ou pela imposição coercitiva. Ou, com outras palavras, se as decisões judiciais devem ser acatadas porque convincentes, aos olhos das partes e da sociedade como um todo, ou se devem ser meramente suportadas, mesmo que com isso não se alcance a paz social.

Quando um dos tribunais superiores profere uma decisão, espera-se que dela se extraia verdadeiro modelo de atuação e que, mesmo que ainda não sumulado um determinado entendimento, sirva aquele julgamento como parâmetro para decisões futuras, proferidas pelos demais órgãos judiciais. Não é só. Espera-se, também, que a jurisprudência dos próprios Tribunais superiores oriente-se em um mesmo sentido, fortalecendo o entendimento outrora manifestado.

É porque há perspectiva de reforma da decisão – derivada da divergência criada e sustentada pelos próprios Tribunais – que se recorre.

Assim, a súmula vinculante, se não for precedida por uma mudança do modo como a jurisprudência formada pelos Tribunais superiores é observada e reiterada pelos mesmos Tribunais, haverá de se mostrar instrumento ineficiente. As decisões proferidas pelas altas Cortes do Poder Judiciário não podem pretender se impor sem que se atente a uma exigência imprescindível: devem convencer não só as partes quanto ao seu acerto, mas também o juiz que proferiu a decisão recorrida e, ainda, a própria sociedade. A exemplo do que ocorreu no final do ano de 2002, quando a Presidência da República revogou uma norma jurídica porque se dobrou aos argumentos que sustentavam sua inconstitucionalidade, também as decisões judiciais devem se impor na medida em que traduzem a convicção de que aquela é a solução certeira oferecida pelo ordenamento jurídico.

José Miguel Garcia Medina é advogado, professor das Faculdades de Direito da UEM e da PUCPR, mestre e doutor em direito pela PUCSP. Autor de “O Prequestionamento nos recursos extraordinário e especial” (3.ª ed., Ed. Revista dos Tribunais, 2002) e de “Execução civil – Princípios fundamentais” (Ed. Revista dos Tribunais, 2002). E-mail:

profmedina@uol.com.br.
continua após a publicidade

continua após a publicidade