Como abutre sobre a carniça, a União se lançou em busca do dinheiro reunido com o leilão de um hotel pertencente ao ex-deputado Sérgio Naya, no Rio de Janeiro. O leilão fora pedido pelas vítimas que, desde fevereiro de 1998, tentam receber as indenizações a que têm direito, mas a União alegava que o hotel fora tornado indisponível já em junho de 2002. A União argüía preferência na percepção dos impostos; as vítimas, baseadas na Constituição, insistiam no caráter alimentício das indenizações. Duas sentenças, duas justiças – a estadual do Rio de Janeiro e a federal – em conflito. Um inusitado caso de briga de poder.
Foi simplesmente ridículo ver a seqüência de cenas: uma sentença mandando bloquear, outra mandando distribuir; os funcionários do Banco do Brasil encurralados, enquanto o gerente fazia forfait para fugir da briga (e da prisão); a força policial sendo convocada para dar cumprimento a uma das sentenças, enquanto se descobria que não existia dinheiro suficiente para a distribuição e, então, o garimpo em caixas eletrônicos e a espera do carro-forte. No final feliz, já pela meia-noite, um pouco de bom senso: os ex-moradores do Edifício Palace 2 recebendo pelo menos parte da grana esperada há mais de seis anos.
Foi, segundo se cogitou, a primeira vez que algo parecido aconteceu. Pelo menos com tamanha publicidade. Mas nem por isso o episódio deve passar em brancas nuvens. Ele traz à baila um problema antigo em que o Estado insensível, arrogando-se na precedência absoluta sobre os simples cidadãos, subtrai destes a possibilidade de realização de seus direitos. Muitas vezes básicos.
Deixe-se de lado a apreciação meramente técnica ou jurídica do caso. Aqui na planície ninguém está muito preocupado se a competência das duas esferas judiciais – a estadual e a federal – se sobrepõem ou não. Se ambos os juízos foram competentes em suas decisões. Se cabia a ordem de apreensão do dinheiro disponível na agência bancária, ou se o gerente da agência devia ou não devia ir preso no caso de desacatar a ordem de um juiz em atendimento a outra ordem judicial. Tudo isso é teatro que pertence à ordem dos fatos e que, com algum talento, daria até roteiro de filme.
O que precisa ser questionado é a incapacidade da legislação brasileira de estabelecer um entendimento prévio do que fazer em tais casos para evitar tamanho fiasco. Bastaria, por exemplo, uma simples troca de algumas palavras ao telefone entre a juíza federal e o juiz estadual. Ou, como estamos na era da comunicação instantânea via internet, uma troca de e-mails. A disputa judicial sobre o dinheiro produzido com o leilão do hotel se arrastou bem mais de uma semana – tempo suficiente para que uma excelência conversasse com a outra excelência e evitasse o público desgaste para a imagem da Justiça como instituição única.
É claro que isso não acontece gratuitamente. A Justiça Federal, mais comprometida com os interesses da União, freqüentemente despreza – como ilustra o caso – os interesses, mesmo os líqüidos e certos, dos cidadãos. Isso passa à sociedade a percepção de um sinal ruim, como se fosse insensível aos problemas vitais dos cidadãos que o Estado tem por obrigação prover. Uma sensação reforçada com a ingente carga de tributos lançada aos ombros dos contribuintes sem a prestação dos serviços correspondentes – entre eles a segurança, incluindo aquela jurídica que ameaçava a segurança física dos ex-moradores do Palace 2.
A esperança é que do episódio fique a lição, que poderia muito bem ser aproveitada já nesta onda de reformas por que passa o Poder Judiciário. Um simples diálogo entre juízes em busca de uma posição sensata para um caso especial é questão que não depende de códigos nem de leis. Só de bom senso e… boa vontade.