Seria a lavagem de dinheiro um crime do colarinho branco, organizado e corporativo?

O traficante internacional de drogas Juan Carlos Ramírez Abadia, preso em agosto de 2007. O reduzido grupo de 200 sortudos (entre os quais, deputados, delegados de polícia e empresários) que ganhou mais de 9.000 vezes nas loterias da Caixa Econômica Federal, entre os anos de 1996 e 2002. Instituições financeiras suíças e americanas no seio da Operação Kaspar II, deflagrada pela Polícia Federal em novembro de 2007. Qual a relação entre todos estes indivíduos e instituições?

A expressão ?lavagem de dinheiro? teve sua origem cunhada, ainda na década de 70, quando do escândalo Watergate. Foi, posteriormente, aceita em âmbito internacional em virtude do desenvolvimento do tráfico internacional de drogas já no início da década de 80 especialmente devido ao envio da cocaína sul-americana para os Estados Unidos e Europa.

As grandes organizações criminais, ligadas aos mais diferentes setores da atividade ilícita, são possuidoras de uma tal disponibilidade de bens e dinheiro que o reinvestimento de tais somas, provenientes de atividades criminosas e onde impera uma total liquidez, faz nascer desvios e condicionamentos no mercado financeiro, na medida em que pode levar ao controle de um inteiro setor ou segmento da economia, conforme de Faria Costa. Santiago acrescenta ainda que foi justamente com o aparecimento do crime internacionalmente organizado que se sentiu a necessidade de punir a lavagem de dinheiro e outros produtos do crime.

Contextualizada no seio do crime organizado, a lavagem de dinheiro constitui, atualmente, uma necessidade imperiosa. Bem por isso, passa-se a admiti-la, sem embargo de outras possíveis classificações, como uma atividade inerente à existência do crime organizado sendo, com freqüência, confundida com o próprio fato que já não se pode admitir. A lavagem de dinheiro é tão-somente uma das várias formas e ações assumidas pelas organizações criminosas em geral.

A tipologia em questão mostra-se regular em toda e qualquer organização criminosa, porque quando uma de suas atividades gera proventos substanciosos, o indivíduo ou grupo envolvido certamente deverá controlar estes fundos ilícitos sem atrair atenção para o crime originário. Ora bem, deve-se deixar claro que a atividade de lavagem de dinheiro é uma forma de criminalidade derivada (ou de caráter subsidiário ou acessório), pois o dinheiro empregado na operação pressupõe, necessariamente, um fato ilícito prévio, seja ele o tráfico de drogas, a corrupção pública ou a evasão de divisas.

Assim, não se assevera de menor relevo classificar o crime em questão na categoria de crimes do colarinho branco ou mesmo como um crime organizado e corporativo. A priori todo crime corporativo traduz-se em um crime do colarinho branco. A recíproca, porém, não se afigura de todo verdadeira.

Breves notas sobre a lavagem de dinheiro

Inúmeras definições foram dadas ao crime de lavagem de dinheiro. A Comissão Presidencial para o Crime Organizado, do governo norte-americano, propõe a lavagem de dinheiro como sendo os meios através dos quais se escondem a existência, a origem ou a utilização ilegal de rendimentos, encobrindo-os de forma que pareçam provir de origem lícita. Em nosso território, o COAF dispõe que o crime de lavagem de dinheiro caracteriza-se por um conjunto de operações comerciais ou financeiras que buscam a incorporação na economia de cada país, de modo transitório ou permanente, de recursos, bens e valores de origem ilícita e que se desenvolvem por meio de um processo dinâmico que envolve, teoricamente, três fases independentes e, quase sempre, simultâneas.

As três fases aludidas na definição do COAF, resultam de um modelo criado pelo GAFI em 1991, hoje largamente adotado pela literatura mundial. Neste sentido, o processo de lavagem de dinheiro compreende as fases de introdução (ou colocação), transformação (ou diversificação) e integração (ou inversão).

Na primeira etapa, o dinheiro sujo é introduzido no mercado financeiro sob o manto de vários outros instrumentos monetários, utilizando-se laranjas, testas de ferro ou empresas de fachada. Este dinheiro também é normalmente dividido em quantias menores, prática conhecida como smurfing, evitando-se a atenção das autoridades de investigação e controle.

Posteriormente tem-se o momento chave do processo, a fase de transformação, quando se pretende desconectar o dinheiro sujo do crime originário, visando-se eliminar os traços de qualquer atividade criminosa. A través da organização de sucessivas e complexas operações financeiras, instrumentalizadas, especialmente, através de instituições bancárias, companhias offshore e paraísos fiscais, alcança-se o mais alto nível de proteção do verdadeiro beneficiário do dinheiro ilícito.

Por fim, na fase de integração, todo o capital ilícito, já devidamente lavado, retorna ao tráfego financeiro normal, precisamente como proventos financeiros oriundos de investimentos a curto ou longo prazo, permitindo, deste modo, a continuidade da atividade criminosa.

Crimes do colarinho branco.

A análise desta forma de criminalidade nos obriga a uma digressão ao início do século passado, precisamente aos estudos de Sutherland, quem inovou ao contextualizar os crimes de colarinho branco como crimes cometidos por pessoas de respeitabilidade e alto nível social. Para o autor, as pessoas que violavam a lei eram criminosas, independentemente do fato de terem sido descobertas, processadas ou até mesmo condenadas seja por crime comum ou por crime de colarinho branco.

Não é uma opinião pacífica, a bem da verdade, sendo posteriormente questionada por Tappan, ao afirmar que as pessoas que não sofriam condenações criminais não eram criminosas, pois a condenação criminal é o único critério aceitável para a punição. Em termos semelhantes a Constituição Brasileira de 1988, em seu artigo 5.º, inciso LVII, assevera: ?ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória?.

As classes sociais das mais altas culturas e o Brasil não foge à regra fornecem alguns destes criminosos, nos dizeres de Henderson: ?criminosos educados?. Isso porque, as culturas avançadas modificam o crime, tornando-o menos coativo e violento, consequentemente, mais inteligente.

Entretanto, antes mesmo das idéias de Sutherland, Morris já admitia a existência de certos criminosos do mundo legal um numeroso porém opaco grupo de delinqüentes que, em virtude da posição social, inteligência e técnicas criminais, podia mover-se por entre os cidadãos normais imunes ao reconhecimento e persecução. Estes criminosos, definidos por Morris, são genuínos e diferem-se dos demais apenas por serem menos sensitivos em alguns aspectos. Põe-se em dúvida se eles próprios consideram-se criminosos.

A privacidade e a complexidade de atividades como a lavagem de dinheiro tornam sua identificação extremamente difícil, analisar os motivos e métodos empregados, sobretudo quando acobertados por uma universalidade de práticas legais, nunca foi simples.

O que nos sugere uma outra característica, qual seja, a da invisibilidade. Em muitos casos a invisibilidade descreve condições de ambos criminoso e vítima. O criminoso do colarinho branco torna-se invisível devido a que o lugar da ação criminosa raramente coincide com o lugar onde seus efeitos poderão ser vislumbrados. Por outro lado, o momento em que o crime ocorre também não coincide com o momento em que seus danos tornam-se aparentes.

E qual seria a razão para este tipo de delinqüente realizar suas atividades ilegais? Sutherland opina a respeito de um excesso de definições favoráveis à violação da lei, sobre definições desfavoráveis (o que ele próprio chama de Teoria da Associação Diferencial). Na verdade, este modo de comportamento criminoso resulta de uma apropriada coincidência entre motivação e oportunidade. A motivação consiste em uma série de construções simbólicas que definem certos objetivos desejáveis, em detrimento de outras circunstâncias nas quais inexistem tais qualidades. Já a oportunidade é definida de acordo com o curso da ação, que faz parte de um repertório pessoal voltado para o comportamento criminoso, ou mesmo um comportamento em potencial.

Crime organizado e crime corporativo

Num segundo aspecto, deve-se analisar a correlação dos crimes do colarinho branco com o crime organizado e corporativo. Isso porque os dois modelos de criminalidade compartem a mesma natureza, são praticados sob estruturas semelhantes e possibilitam até mesmo a conivência de autoridades administrativas e legislativas. Porém, estaria excluída desta correlação toda e qualquer ofensa criminal ainda que praticada por meio do crime organizado que não tenha sido cometida por pessoas de respeitabilidade e alto nível social.

Para Cressey, crime organizado compreende qualquer delito cometido por uma pessoa que ocupa certa posição em uma estabelecida divisão laboral, designada especialmente para atividades criminosas; e, o criminoso organizado, por definição, ocupa uma posição no sistema social, uma organização que foi racionalmente desenhada para maximizar os proventos dos serviços ilegais e provê-los, de acordo com a demanda, aos membros da sociedade em que ele próprio vive.

Neste sentido, o crime organizado, bem como os crimes corporativos, normalmente, compartem igual know-how ilegal e devem ser analisados sob a ótica das características sociais e do passado criminoso de seus agentes. Tais características devem ser avaliadas conjuntamente, uma vez que ambos os modos de criminalidade são, quase sempre, conexos e sua demarcação, muitas vezes, obscura. Levy explica que a razão desta opacidade resulta do maior crescimento do envolvimento profissional (seja individual ou corporativo) no âmbito do crime organizado, quando se trata de fraudes sofisticadas ou mesmo do diuturno uso de instituições financeiras, especialmente para lavar altíssimas somas oriundas das mais diversas fraudes ou crimes.

Verdade seja dita, o crime organizado é constituído por um único e, ainda que segmentado, abrangente grupo que, em busca de dinheiro e poder sobretudo financeiro e político ameaça toda a sociedade. Pode-se descrevê-lo como uma família criminosa, com noções de burocracia, estruturas hierárquicas, caracterizado por regras formais e com agentes especializados nas suas mais diversas funções. Há vezes, e não são poucas, que este grande grupo faz uso de outros grupos menores, flexíveis e diversificados, devido ao imperativo da permanência como entidade secreta, evitando-se assim a força coerciva e dissuasiva da publicidade. É certa, porém, a existência de um equilíbrio entre a publicidade e a atuação secreta. Mas, somente as maiores e mais complexas organizações estão aptas a desenvolver esse chamado equilíbrio.

Também é, de certo modo, imperiosa a conciliação da ordem interna (por meio de formas específicas de controle) com a legitimidade externa, buscando-se, para tanto, planos de oportunidades ocupacionais e sociais. Este envolvimento, ?em tempo integral?, na atividade criminosa, permite aos seus agentes adquirir habilidades técnicas e de certo profissionalismo, conforme explica Cohen.

Em suma, nota-se que todas as interpretações de crime organizado pressupõem uma extraordinária continuidade no tempo. Ainda que infrutíferas quando tentam explicar o crime de lavagem de dinheiro, ou mesmo outras formas de crime organizado, muitas definições encontram abrigo em classificações como a tradição, a ausência ou falta de controle do Estado, certa pobreza e subculturas delinqüentes. Porém, não se pode concordar integralmente com tal proposição, porque quando trasladada ao continente europeu, via de regra, tais atividades ilegais raramente têm relação com pobreza, subdesenvolvimento e falta de controle estatal, mas tão-somente com características como influência política e controle de recursos.

É sabido que as organizações criminosas são forçadas a investir seus rendimentos na economia legal, pois existem grandes limites à expansão dos mercados ilegais. O acúmulo de proventos do tráfico de drogas, por exemplo, nem sempre encontra oportunidades de investimento no mesmo ou em outros nichos econômicos ilícitos. A instabilidade, no que concerne à procura por bens e serviços ilícitos, impulsiona a busca por valorizações no mercado econômico legítimo, como bem ressalta Block. Assim sendo, e segundo Becchi e Rey, o crime organizado, ao atuar em âmbito corporativo, abandona a intimidação e a violência, pois, caso contrário, seria imediatamente noticiado e combatido. Sem embargo, nem sempre é assim. Conforme Catanzaro, a continuidade da violência e da intimidação objetivam, muitas vezes, corromper o mercado legal, ademais de atrair forçosamente empresários deste setor a fim de transformá-los em novos aliados.

Conclusão

Pois sim. A lavagem de dinheiro, como prova do sentido histórico e da mobilidade do direito penal, surgiu devido a uma, então nova, conjuntura no processo de conexão de diversas atividades criminosas (inicialmente com o aumento do tráfico internacional de drogas, nos anos 80).

Em dias hodiernos, vê-se o envolvimento de quaisquer outras instâncias, seja social, cultural ou econômica, ou, como prefere citar de Faria Costa, da própria ?cultura da corrupção?. Deste modo, não se pode negar que a atividade de lavagem de dinheiro possui fortes laços com a classificação dos criminosos do colarinho branco no seio do crime organizado e corporativo. As vultosas somas provenientes do crime em especial do tráfico de drogas, da corrupção pública e da evasão de divisas obrigaram seus agentes a modificar o modus operandi para então atuar de forma organizada e com suportes corporativos confiáveis, sobretudo quando utilizados meios eletrônicos, informáticos e o sistema financeiro internacional.

O nível de complexidade destas atividades criminosas permite claramente enquadrar os lavadores de dinheiro como criminosos do colarinho branco (face à inteligência e destreza técnica mencionadas) e suas agências do crime, como sociedades organizadamente voltadas para o cometimento de crimes corporativos. Muitos são os casos em que inúmeras corporações, ativas no mercado econômico lícito, vêem-se envolvidas em processos de lavagem de dinheiro ou em algum escândalo de corrupção.
O que nos remete à pergunta inicial. Qual a relação entre todos os indivíduos e instituições mencionados no início do texto?

Referências

Block, A. Perspectives on organizing crime: Essays in opposition. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1991. Faria Costa, J. F. de. O branqueamento de capitais: Algumas reflexões à luz do direito penal e da política criminal. In: Correia, E. (et. al.). Direito penal económico e europeu: Problemas especiais. Coimbra: Coimbra Editora, 1999. Green, G. S. Occupational crime. Chicago: Nelson-Hall Publishers, 1996. McDonald, W.F. Crime and law enforcement in the global village. Cincinnati: Anderson Publishing Co., 1997. Passas, N. Organized crime. Dartmouth: The International Library of Criminology, Criminal Justice and Penology, 1995. Ruggiero, V. Organized and corporate crime in Europe: Offers that can?t be refused. Dartmouth: Socio-legal Studies Series, 1996. Santiago, R. O branqueamento de capitais e outros produtos do crime: Contributos para o estudo do art. 23.º do Decreto Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro e do regime de prevenção da utilização do sistema financeiro no branqueamento (Decreto Lei n.º 313/93, de 15 de Setembro). In: Correia, E. (et. al.). Direito penal económico e europeu: Problemas especiais. Coimbra: Coimbra Editora, 1999. Sutherland, E. H. White collar crime: The uncut version. New Haven: Yale University Press, 1983.

Rodrigo Toledo França é doutorando em Direito Penal Universidade de Salamanca Espanha. Pós Graduado em Direito Penal Econômico e Europeu Universidade de Coimbra – Portugal.

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