Um amigo que diz que o brasileiro é o povo mais revolucionário do mundo, está sempre falando de mudanças, de reformas, de transformações, etc. Em nossas discussões, ele sempre tenta me convencer dessa sua afirmação. Desconfio que esse amigo, ilustre advogado e historiador Ademir Fernandes Cleto, hoje residindo em Brasília, esteja me gozando. Ele argumenta, perguntando: você já viu uma cidade sem obras, estão eternamente em reformas? Já viu algum aeroporto concluído? Já observou algum governo assumir e começar a governar sem bater na mesma tecla: é preciso mudar a Constituição? Nossa Carta Magna é de 1988 e já sofreu 40 emendas, estando mais algumas no forno congressual. Acresça-se a isto as revoluções são prometidas a cada campanha política. Em nome de nossa amizade, termino me dando por convencido dessa veia revolucionária do povo brasileiro. No entanto, sou obrigado a reconhecer que somos um povo talentoso e criativo (muitos conseguem sobreviver com menos de um salário mínimo). Um povo com imensa capacidade de revolucionar tudo e nada mudar, ficando tudo como antes. É admirável essa capacidade de mudar para não mudar. Sensacional. Nossos políticos, estamos em plena safra de programas dos partidos, comparecem aos meios de comunicação de massa, numa prestação de contas canhestra, dando-nos notícias das mudanças que patrocinaram ou para as quais contribuíram. Conduta esta que não passa de mero discurso vazio, demagógico, insincero.
Pergunto-me sempre: será que alguém quer mudar alguma coisa no Brasil? Não encontro resposta acabada. Contudo, desconfio que ninguém quer fazer reforma nenhuma; se querem é para nada mudar e ficar tudo como está. Nesse meio devaneio, acorre-me a lembrança as inúmeras reformas que são apresentadas como necessárias ao desenvolvimento do País, sem o que, não será possível acabar, ou pelos menos diminuir, o desemprego e a fome que assola grande parte de nossa população.
Evidentemente, não me arriscarei a falar sobre todas essas reformas nesta oportunidade. Destacarei uma das mais debatidas e que, por dever de ofício, devo por ela me interessar: a reforma do Poder Judiciário. Fico tentando imaginar quem realmente deseja fazer essa reforma. O Poder Executivo? O Poder Legislativo? O próprio Poder Judiciário? A OAB? O Ministério Público? Os meios de comunicação social? As classes sociais mais elevadas e concentradoras de rendas? Quem, afinal? E como pensar não dói, penso em cada um desses setores da sociedade e, infelizmente, não vejo ninguém disposto a patrocinar com seriedade essa reforma tão importante. Arrisco-me a continuar perguntando sobre o interesse em reformar, pelo menos, dos três poderes da República. A começar pelo Poder Executivo: teria este Poder interesse numa Justiça célere? Ele que entulha os órgãos do Judiciário com inúmeros processos e, segundo o próprio presidente do Supremo Tribunal Federal, é responsável por 84% (oitenta e quatro por cento) dos processos nos Tribunais Superiores. Não me parece lógico. O Poder Legislativo? Que faz leis sem a menor técnica legislativa e cheias de furos, exatamente para que ninguém as entenda e tire proveitos das brechas que oferecem, especialmente, contra o Estado. O próprio Poder Judiciário? Este parece que poderia ter algum interesse, até mesmo por instinto de sobrevivência, para neutralizar os ataques que vem sofrendo e que estão maculando sua imagem. Será? Esse Poder sabe que, se mexerem para valer, terá que ser revista muita coisa, a começar do próprio recrutamento de pessoal, especialmente, dos magistrados. Coloco uma indagação simples: estaria o Poder Judiciário brasileiro disposto a aceitar uma regra como a contida no artigo 114, da Constituição Argentina, segundo a qual a seleção por concurso público para a magistratura e a administração do Poder Judiciário é responsabilidade de um Conselho formado, periodicamente, por representantes dos órgãos políticos resultantes de eleição popular, por juízes de todas as instâncias (não só dos tribunais), por advogados e por pessoas do meio acadêmico e científico? Não creio muito, apesar de ser um otimista inveterado.
Minha percepção, infelizmente, leva-me à convicção de que não há qualquer possibilidade de ser feita, tão cedo, uma reforma do Poder Judiciário que o faça funcionar melhor. Primeiro, porque, antes de se identificar primeiro as mazelas e os pontos que precisam de mudança, estabelecem-se discussões estéreis e paralelas sobre assuntos polêmicos e que em nada contribuem para a evolução da idéia. Aponto alguns exemplos: (i) certos setores quando falam dessa reforma colocam na mesa o chamado controle externo do Judiciário, sem dizerem no que constitui esse controle, como algo indispensável, sabendo que esse Poder resiste à idéia. Parece até que é combinado, como no vôlei, alguém levanta a bola para o outro cortar; (ii) o Poder Judiciário, por sua vez, reage com toda pompa, afirmando que sem a reforma dos códigos não adianta reforma do Judiciário; (iii) ai acontece um crime bárbaro cometido por um menor e alguém jogo outro elemento com potencial para desviar a discussão do seu foco do debate, a redução da maioridade para efeitos penais; (iv) outros vêm e lançam a idéia de eleição para o preenchimento de cargos na magistratura, o que pode funcionar em outras culturas, não na nossa.
Significa dizer que os emboladores do meio de campo, de todos os matizes, estão aí é para isto mesmo, atuando com desenvoltura e alcançando pleno sucesso, porque, ao jogar tudo no liquidificador da reforma, sem separar o que é mais ou menos importante, mistura-se tudo e ninguém entende mais nada, não se consegue mais identificar o que precisa ser feito. Não se sai do lugar, é o cachorro correndo atrás do rabo. É o samba do crioulo doido ou o FEBEAPÁ de que falava o saudoso Stanislaw Ponte Preta que tanta falta faz neste momento.
A meu ver, não se fará uma reforma séria do Poder Judiciário sem que se discuta previamente a atuação desse Poder, sem receio de ferir suscetibilidades, e a atuação dos demais operadores do direito, professores, advogados, membros do Ministério Público, delegados, etc. Além, é lógico, dos legisladores. É necessário que cada um desses setores entenda que tem uma parcela de culpa em tudo isto e identifiquem onde está contribuindo para a prestação jurisdicional de má qualidade que a sociedade tem recebido contrariada. Não adianta segregar a questão apenas ao âmbito do Poder Judiciário. Tem-se que se abrir o debate.
Finalmente, como os economistas não conseguem resolver a problemática da economia e nem os marqueteiros conseguem resolver os problemas de produtos de má qualidade (inclusive os produtos políticos), sou cético com a idéia de que tudo deva ser resolvido por especialistas, mas sou um otimista. Por esta razão, a título de provocação, deixo uma pergunta: será que o controle externo do Poder Judiciário pode ser entregue exclusivamente a pessoas dos meios jurídicos, como os integrantes desse Poder, os componentes do Ministério Público e os advogados, já que todos eles têm interesses diretos no assunto?
Antônio Dílson Pereira
é advogado e professor.