Segundo previsão do artigo 384, caput, do Código de Processo Penal, “se o juiz reconhecer a possibilidade de nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova existente nos autos de circunstância elementar, não contida, explícita ou implicitamente, na denúncia ou na queixa, baixará o processo, a fim de que a defesa, no prazo de 8 (oito) dias, fale e, se quiser, produza prova, podendo ser ouvidas até três testemunhas.”

Deve também indicar expressa e fundamentadamente o novo tipo penal que vislumbrar a possibilidade de configuração.

Estes requisitos no despacho são indispensáveis para atender a exigência constitucional de oferecimento de contraditório e ampla defesa aos acusados em geral.

Veja-se que, no caso do juiz analisar as provas dos autos e verificar a possibilidade de configuração da chamada emendatio libelli simpes (CPP, art. 383, caput), e não indicar o novo tipo penal, nem as provas dos autos que sustentam este novo crime vislumbrado, para a defesa de nada adiantará a baixa dos autos para que “fale e, se quiser, produza prova”.

No caso de o juiz não indicar na nova acusação a prova que a sustenta, a defesa não terá o que falar, e nem saberá qual prova poderá produzir para contrariar aquelas que se apresentam de forma capaz a ensejar condenação por novo tipo penal. De imediato, descumprirá a finalidade da baixa dos autos contidos na norma instrumental, que é justamente possibilitar sua defesa, conferindo possibilidade de apresentá-la de forma efetiva.

Portanto, a decisão que determina a baixa dos autos deve ser fundamentada, com indicação do novo tipo penal vislumbrado, e respectivas provas, não somente para atendimento ao disposto no artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, como também para possibilitar ao réu contraditar a nova acusação segundo as provas carreadas para os autos, com isso, exercer seu sagrado direito à ampla defesa.

Este procedimento nada mais é do que o exercício de uma acusação. Isto é, imputa o cometimento de novo crime e as provas que indicam a materialidade, e a autoria do crime em relação ao réu.

Por isso, não encontramos fundamentos jurídicos para negar que esta modalidade de decisão judicial tem efetiva carga acusatória.

Esta situação choca-se com a nova ordem constitucional, que elegeu o Ministério Público como o único com legitimidade para propositura de ação penal pública, salvo a hipótese de sua inércia, nos termos do artigo 5.º, inciso LIX da Constituição Federal, e 29, do Código de Processo Penal. Portanto, “São funções institucionais do Ministério Público: I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;” conforme prevê o artigo 129, inciso I, da Constituição Federal.

Promover a ação penal pública representa a atuação em todo o curso da persecução criminal, e não apenas o oferecimento da denúncia. Por isso, a possibilidade de acusação diversa daquela contida na denúncia é ato privativo do Ministério Público, não podendo ser suprido nem mesmo pela atuação judicial.

No caso ora em estudo, quando o julgador procede de acordo com o disposto na norma infraconstitucional em comento, inegavelmente está a acusar o processado por nova conduta infracional. Imputa ao réu o cometimento, em tese, de infração penal não atribuída inicialmente pelo dominis litis. Portanto, a mutatio libelli simples é uma acusação que parte diretamente da interpretação do juiz, sem qualquer participação do Ministério Público neste ato. O julgador faz as vezes do representante do parquet.

Observe-se que, formalmente, os requisitos são praticamente os mesmos, tanto da mutatio libelli simples (CPP, art. 384, caput), quanto da mutatio libelli com aditamento.(CPP, art. 384, parágrafo único). Ou seja: a) possibilidade de nova (diversa) definição jurídica; b) baixa do processo (baixam-se autos e não processo); c) oportunidade de oferecimento de defesa; d) possibilidade de produção de provas; e) oitiva de até três testemunhas; etc.

Na matatio libelli simples, é o juiz quem define o novo tipo penal, e na mutatio libelli com aditamento é o Representante do parquet. Esta semelhança torna evidente o exercício da acusação em ambas as hipóteses, o que faz o juiz exercer a função de acusador quando aplica a regra do artigo 384, caput, do Código de Processo Penal.

Note-se também que nas hipóteses em comento, há prática de cerceamento de acusação, a qual é maléfica para o processo, na mesma proporção que é o cerceamento de defesa. Quando há cerceamento de acusação, dificulta-se ou impede-se o direito da sociedade, através do Estado, de exercer esta tarefa, tal qual ocorre quando resta cerceada a defesa do acusado.

Se é preceito constitucional que é função institucional e privativa do Ministério Público em promover a ação penal pública, a aplicação do dispositivo legal ora em comento retira-lhe qualquer possibilidade de ação, inclusive, para se insurgir contra a decisão judicial. Isto porque, caso entenda ilegal ou imprópria a decisão, sequer há previsão de recurso cabível contra esta modalidade de julgado. Resta-lhe, unicamente, valer-se do instituto da correição parcial, de duvidosa admissibilidade para este caso.

Também nesta hipótese, o princípio da imparcialidade do juiz restará inegavelmente arranhado, na medida em que executa acusação formal contra o réu que está sendo por ele processado. Observe-se que, neste caso, a defesa ficará totalmente insegura quanto à lisura da sentença, e, quando ela for condenatória, não convencerá que o julgador foi imparcial.

Por isso cremos que o melhor caminho a ser adotado pelo juiz é, ao invés de aplicar a mutatio libelli simples (CPP, art. 384, caput), fazer incidir a regra da mutatio libelli com aditamento, prevista no artigo 384, parágrafo único, do Código de Processo Penal, baixando os autos para que o representante do Ministério Público, querendo, emende a inicial, com a nova imputação e indicação da prova que a sustenta.

Nesta hipótese, caso o Ministério Público não adite a denúncia, não pode o juiz exercer de mão própria a função acusatória, devendo absolver o réu, reservando ao representante do parquet a possibilidade de recurso de apelação para postular a condenação do réu no tipo que desde a denúncia entendeu cabível.

A providência ora sugerida implica na preservação da função institucional do Ministério Público relativamente à promoção da ação penal pública, e mantém inabalada a neutralidade do juiz na presidência do feito, resguardando-se os direitos do acusado à ampla defesa e ao contraditório, e à acusação, o exercício pleno desta direito.

No próximo artigo abordaremos a inconstitucionalidade, tanto do caput do artigo 384, quanto do seu parágrafo único.

Jorge Vicente Silva é Pós-graduado em Pedagogia a nível superior e Especialista em Direito Processual Penal pela PUCPR, autor de diversos livros publicados pela Editora Juruá, dentre eles, Tóxicos, análise da nova lei, estando estando no prelo, Sentença Penal Condenatória, com lançamento para breve.

jorgevicentesilva@hotmail.com
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