Para deslanchar o programa de reforma agrária no Brasil, o Instituto de Colonização e Reforma Agrária – Incra anuncia um programa ousado para este 2004 que mal inicia. Com base em tecnologia disponível desde o período do governo passado, vai rastrear cada centímetro do território nacional em busca de áreas sem dono ou simplesmente ocupadas de forma ilegal. Calculam os técnicos do órgão que no Brasil existam pelo menos 200 milhões de hectares de terras sem propriedade conhecida.
O Brasil – este é um dado interessante – mede, segundo o Incra, 850 milhões de hectares. Destes, apenas 418 milhões estariam devidamente registrados. Cerca da metade do que sobra, grosso modo, é espaço ocupado por cidades, rios, lagos, estradas e picadas. A outra metade – daí a conta que faz água na boca de algumas das lideranças do MST – Movimento dos Sem Terra – seria terra de ninguém. E terra de ninguém é terra possível de ser distribuída a quem não a tem. “É provável que se descubra muita terra para a reforma agrária”, diz Rolf Hackbart, diretor do Incra.
O programa será executado com a ajuda de imagens de satélite a serem fornecidas pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – Inpe. Abi Abib, o diretor-executivo do mesmo Incra, festeja: “É um sistema de georreferenciamento que permitirá identificar o dono de cada palmo de terra”. As imagens de satélite serão confrontadas com o que está escrito e registrado nos cartórios para definir, “com precisão de centímetros”, os limites de cada propriedade.
Com esse programa que o governo do PT encontrou prontinho e não só técnica, mas financeira e juridicamente estruturado, dar-se-á início a mais um marco zero do governo Lula, até a medula comprometido com a reforma agrária. Mas em vez do boné do MST, serão usados chips. “Vamos inaugurar – garante Abib – uma política jamais vista no País, varrer de vez o processo de grilagem, saber quem é quem, melhorar o processo de tributação das propriedades rurais e, enfim, garantir um melhor gerenciamento do território brasileiro.”
De quebra, o processo (que será financiado pelo Banco Mundial em 60%, pelo Incra em 32% e pelos governos estaduais em 8%) poderá ainda dar uma mãozinha na tarefa policial pelo cumprimento da legislação ambiental. A base de dados poderá ser compartilhada por instituições federais, estaduais e municipais, incluindo a Funai, a Justiça e a Agência Nacional de Águas. Além do Exército nas regiões de fronteiras.
A euforia do Incra pela possibilidade de iniciar essa nova era dos descobrimentos não é compartilhada por todos. Nem mesmo do MST, que já anunciou sua decisão de “acompanhar de perto” a atividade do Incra, onde muitos funcionários estariam comprometidos com os fazendeiros e, assim, dispostos a manipular o tamanho das áreas para, entre outras coisas, receber indenização maior. “Acho que pode haver suborno”, desconfia João Paulo Rodrigues, um dos líderes. Na outra ponta, o presidente da Sociedade Rural Brasileira, João Sampaio, entende que o projeto pode trazer problemas à produção do País. “Não existe uma terra que não tenha ninguém” – raciocina ele -, pedindo já de antemão que o Incra leve em conta mais que simples documentos, mas também o direito adquirido, o investimento feito e coisas do gênero. Tais problemas poderão começar em casa: em Rondônia, por exemplo, a União seria proprietária legítima de simplesmente 95% da área de todo o Estado…
Como se vê, a violência no campo, que no ano que passou bateu todos os recordes, pode encontrar na execução desse ousado e moderno projeto outro e poderoso gatilho. Tudo vai depender de como ele será encaminhado. Afinal, satélites, como vimos no Iraque e alhures, também são capazes de guiar para a guerra. Esperemos que o façam para o endereço da paz.
