Sacolas plásticas e responsabilidade ambiental solidária dos supermercados

Foi divulgado nos meios de comunicação que os supermercados deste Estado, assim como as entidades representativas desse setor, deverão apresentar à Secretaria do Meio Ambiente e Recursos Hídricos soluções alternativas para as sacolas feitas à base de plástico convencional, há anos utilizadas para acondicionar os produtos comprados nesses estabelecimentos. Isto porque se tem entendido que a falta de destinação final ambientalmente adequada para as mais de 80 milhões de sacolas plásticas utilizadas mensalmente nos supermercados paranaenses vem gerando um passivo ambiental de grandes proporções, e que, à luz das normas de proteção ambiental, todos, desde a fonte geradora, até o consumidor final, são solidariamente responsáveis pelos danos ambientais que eventualmente vierem a causar esses resíduos. Sobre esta segunda justificativa, algumas considerações se fazem necessárias.

Responsabilidade, solidariedade e dano são conceitos jurídicos que têm significação própria e, por essa razão, devem ser compreendidos individualmente antes de serem analisados em conjunto. Ao se falar em responsabilidade, do ponto de vista do Direito, entra em cena o dever que alguém tem de reparar o prejuízo decorrente da violação de outro dever jurídico. Assim, será responsável aquele que, violando de um dever jurídico preexistente, causar um dano. A solidariedade, por sua vez, refere-se ao vínculo existente entre duas ou mais pessoas que as torna, em uma situação específica, simultaneamente obrigadas por um dever jurídico exemplo comum é a fiança prestada por duas pessoas a uma mesma dívida, caso em que ambas obrigam-se conjuntamente por seu pagamento. Dano, finalmente, é a alteração provocada no estado original de um bem que importe a sua deterioração parcial ou completa, resultando em prejuízo ao seu titular. Assim, afirmar que alguém é responsável solidário por um dano pressupõe uma situação em que esse indivíduo está obrigado juntamente com pelo menos mais uma pessoa ao cumprimento do mesmo dever, de modo que, se qualquer um deles violar esse dever e com isso causar um dano, o prejudicado poderá exigir de um, de outro ou de ambos a sua reparação.

A responsabilidade solidária por danos ao meio ambiente geralmente costuma ser invocada e explicada sob o argumento de que na área ambiental a responsabilização é objetiva, e que isto estaria a significar que todos aqueles envolvidos na cadeia de eventos que culminarem no dano respondem em conjunto por sua reparação, não importando se houve vontade (dolo), se foi o caso de negligência, imprudência ou imperícia (culpa) ou se foi a conduta daquele que se pretende responsabilizar a causa direta do evento danoso. No entanto, aqueles que assim se posicionam equivocam-se por dois motivos: primeiro porque a responsabilidade na forma objetiva apenas enuncia que se dispensa, no caso concreto, a demonstração de dolo ou culpa do agente para que este seja obrigado a reparar os prejuízos que causar, nada tendo a ver com a imposição do vínculo de solidariedade a dois ou mais sujeitos este decorre apenas da lei ou da vontade das partes; segundo porque legislação ambiental brasileira, ao tratar da responsabilidade objetiva, não a concebe com base na teoria do risco integral, que não admite excludentes e possibilita a responsabilização mesmo daquele que não tenha sido a causa direta do dano, mas com base na teoria do risco criado, que as admite, assim como não impõe solidariedade entre os agentes.

A Lei n.º 6.938, de 31 de agosto de 1981 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente) estabelece, no art. 14, § 1.º, que ?é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade?. Observe-se que, pela interpretação literal desse texto, não é possível esclarecer se Direito brasileiro abraçou a teoria da responsabilidade objetiva do risco (que admite as excludentes da culpa da vítima, do fato de terceiro, do caso fortuito e da força maior) ou a do risco integral (que não as admite). Contudo, dessa norma se tira que a responsabilidade do poluidor decorre de sua atividade lesiva ao meio ambiente e a terceiros, de modo que fica fora desse contexto qualquer conduta lesiva que não decorra diretamente da ação ou omissão daquele a quem se pretende responsabilizar pelo dano, tal como se dá nos casos em que há ação de terceiros, vítima ou não, caso fortuito (evento causado pela ação humana de terceiros) e a força maior (evento causado pela natureza). O texto da lei não emprega palavras desnecessárias, de modo que é inadequado pretender afastar o nexo de causalidade entre a conduta do agente (sua atividade) e o dano, porque, mesmo em sede de responsabilidade objetiva, não se pode responsabilizar quem não tenha dado causa ao evento danoso.

Importante salientar que esta análise decorre da hermenêutica jurídica, partindo da premissa de que se as normas de proteção ambiental, que tratam de possíveis poluições com altíssimo impacto no ambiente, como é o caso da legislação que versa sobre energia nuclear e sobre a responsabilidade dos armadores por derramamentos de óleos em mares e rios, demonstram a necessidade de se verificar a ação em si e a sua relação com o resultado danoso, não seria diferente a interpretação dada à  Lei n.º 6.938/81.

Transplantando esse raciocínio para a o problema das sacolas plásticas de supermercado, por mais que seja louvável a preocupação com o impacto decorrente da disposição inadequada no ambiente de milhares desses resíduos, que não são biodegradáveis, é fora da razoabilidade, e dos próprios ditames da lei, pretender que os estabelecimentos de supermercado ou as entidades representativas desse setor possam ser responsabilizados pelos danos ambientais causados pela conduta das pessoas que vão às compras, utilizam-se das sacolas para carregar os produtos adquiridos e depois as descartam sem maiores cuidados no meio ambiente. Um raciocínio dessa natureza permitiria uma escala infinita de responsabilização e conduziria ao caos social pela ausência de limitação das obrigações dos indivíduos e de segurança jurídica, pois permitiria a responsabilizacao do consumidor, do supermercado, do fabricante da sacola, daquele que realizou a propecção do petróleo do qual se faz o plástico e, em última análise, de toda a coletividade. Assim, não há solidariedade entre os supermercados e seus consumidores, sendo os primeiros passíveis de responsabilização apenas se ficar caracterizada a disposição ambiental final inadequada das sacolas plásticas por conduta direta desses estabelecimentos. Se a conduta for dos consumidores, destes será a responsabilidade, e de forma exclusiva.

A solução mais adequada à questão passa, portanto, não pela responsabilização, mas pelo enfrentamento de duas outras questões. A primeira é: os supermercados tomaram ou estão tomando todas as medidas cabíveis para evitar o problema? O razoável de se exigir nesta situação seria o investimento em medidas sócio-educativas que destaquem a importância da adequada reutilização e encaminhamento desses resíduos para a reciclagem. A segunda é: inibir a conduta original (de fornecimento de sacolas plásticas tradicionais pelos supermercados) resolverá o problema? Claro que não, pois todos sabem que, nas residências, mais de 90% destas sacolas são reutilizadas, recebendo a separação diária do lixo, ou, ao menos, recebendo-o integralmente, sem segregação nos casos em que os cidadãos não praticam a ação ambientalmente ideal. Sendo assim, caso as pessoas seja impedidas de utilizar estas sacolas plásticas, acabarão tendo de comprar sacolas específicas para a colocação dos resíduos de suas casas. Assim, se a disposição final destes resíduos embalados nas sacolas de supermercado está incorreta, isto continuará a acontecer com aquelas adquiridas e utilizadas para especificamente para esta finalidade.

É importante deixar claro, no entanto, que a análise ora realizada não tem por objetivo desabonar a louvável campanha que se pretende implementar para que sejam criados centros de coleta dessas sacolas e a sua substituição por outras que se decomponham mais facilmente na natureza o que já foi realizado com sucesso em Curitiba para tratamento da disposição final de lâmpadas, pilhas e baterias. O que não se pode chancelar é tentativa de se justificar essa iniciativa com base na invocação de uma responsabilidade ambiental solidária, e objetiva pela teoria do risco integral, que, como visto, não tem lugar, pelo menos até o momento, no Direito brasileiro. Talvez fosse mais relevante e eficiente repensar o processo de licenciamento ambiental, no curso do qual medidas compensatórias podem ser exigidas exatamente no sentido da execução de medidas de educação sócio-ambientais e no investimento de estruturas para receber esses resíduos, inclusive possibilitando melhores condições de trabalho àqueles que vivem desse lixo que não é lixo, que são recicláveis, verdadeiras matérias-primas e, conseqüentemente, riquezas.

A proteção do meio ambiente e a sua relação com o desenvolvimento é provavelmente um dos temas mais polêmicos e complexos da atualidade. Se, de um lado, existem respeitáveis pontos de vista e razões para a mudança de mentalidades na utilização dos recursos naturais, há de outro um mundo de seis bilhões de indivíduos, com grande parcela de miseráveis, clamando por melhoria das condições de vida, geração e distribuição de riquezas, maior eficiência do Estado, segurança, enfim, paz social. Em um cenário tão antagônico, não é difícil que predomine por vezes a irracionalidade sobre a racionalidade, a paixão colérica sobre o diálogo, ou o radicalismo sobre o equilíbrio, mas não pode a sociedade se descuidar ao ponto de permitir que isto faça com que um tema tão importante como o da responsabilidade ambiental seja distorcido e afastado de seus propósitos.

Cesar Lourenço Soares Neto é coordenador-adjunto do curso de graduação em Direito, coordenador acadêmico da Especialização em Direito Ambiental e professor de Direito Ambiental na UnicemP, na graduação, especialização e no mestrado. Advogado.

Shalom Moreira Baltazar é professor de Direito Civil do curso de graduação em Direito e da especialização em Direito na UnicenP. Advogado.

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