A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) aumentou a pena aplicada a dois condenados em Porto Alegre por entender que o roubo se consuma tão logo o infrator se apodera do bem (teoria da “aprehencio”) (STJ, REsp 1.184.444/RS, Quinta Turma, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 17/06/2010).
Segundo notícia publicada no site do STJ em 9 de julho de 2010:
Roubo se consuma tão logo infrator se apodera do bem
(…) os dois infratores, acompanhados de um adolescente, subtraíram telefones celulares, relógio de pulso, corrente e anel de prata de três vítimas que caminhavam numa via pública da capital gaúcha, além de certa quantia em dinheiro.
Na ocasião, M. A. aproximou-se das vítimas empunhando uma faca e, em tom de ameaça, ordenou que lhe passassem todo o dinheiro que levavam consigo. Ato contínuo, U. e o cúmplice adolescente aproximaram-se e, reiterando as ameaças, exigiram que os ofendidos lhes entregassem também seus pertences. Logo após se apoderarem dos bens, os infratores fugiram do local.
A ocorrência foi registrada por policiais militares que, durante patrulhamento rotineiro, avistaram as vítimas pedindo auxílio. Uma delas acompanhou os policiais na tentativa de localizar os infratores nas proximidades do lugar onde tudo ocorreu.
Com o êxito da iniciativa, foi dada voz de prisão aos dois maiores de idade, dez minutos depois de consolidado o crime. A res subtraída, avaliada em R$ 1.230, foi imediatamente recuperada e devolvida aos proprietários.
Da notícia ainda destacamos:
(…) M.A. e U. foram condenados pelo Tribunal de Justiça estadual (TJRS) à pena de 4 anos, 10 meses e 20 dias de reclusão, em regime inicial fechado, além do pagamento de 20 dias-multa pela prática de delito previsto no artigo 157, parágrafo 2.º, do Código Penal.
O órgão, no entanto, acolheu a tese de que se tratava de “delito de forma tentada”, como pediu a Defensoria Pública. E justificou a decisão sob o fundamento de que, embora os objetos tenham sido subtraídos mediante ameaça, o roubo não teria se consumado, já que os acusados foram presos logo após o crime, e os bens foram integralmente restituídos aos legítimos donos.
(…) Contrariado, o MPRS recorreu ao STJ, solicitando o devido aumento da pena. O pedido foi deferido pela Quinta Turma do Tribunal. Para o ministro Arnaldo Esteves Lima, relator do recurso especial, o bem roubado não precisa ter saído do campo de visão da vítima para a consumação do crime.
Este se caracteriza ain&sh,y;da que o bem seja recuperado em seguida por seu proprietário. “A consumação do roubo ocorre no momento em que o agente se torna possuidor da res subtraída mediante grave ameaça ou violência, sendo irrelevante que a coisa saia de esfera de vigilância da vítima”, afirmou.
Com esse entendimento, Arnaldo Esteves Lima determinou que a pena de M.A. e U. fosse redimensionada para 7 anos e 4 meses de reclusão. O magistrado decidiu, ainda, que a prisão seja cumprida em regime inicial fechado, em razão dos maus antecedentes dos réus.
Ambos são reincidentes, tendo sido condenados pela prática de delitos anteriores. O voto consoante com parecer do Ministério Público Federal, favorável ao provimento do recurso foi seguido de forma unânime pelos demais ministros da Turma(1).
Fonte: www.stj.gov.br, 09 jul. 2010.
Rogério Sanches Cunha destaca que no crime de roubo tutela-se o patrimônio e a liberdade individual da vítima(2).
Guilherme de Souza Nucci(3) recorda que, por tratar-se de crime material, é imprescindível que o bem seja tomado do ofendido, estando em posse mansa e tranquila do agente, e conclui: se “houver perseguição e em momento algum conseguir o autor a livre disposição da coisa, trata-se de tentativa”.
Em julgamento anterior a Quinta Turma do STJ já havia se pronunciado no mesmo sentido (REsp 1.098.759/RS)(4).
Idêntica posição adotou a Sexta Turma do STJ. Da ementa do REsp 1.098.857/RS(5) transcrevemos:
Ademais, conforme orientação firmada pelo Superior Tribunal de Justiça, considera-se consumado o crime de roubo, assim como o de furto, no momento em que o agente se torna possuidor da coisa alheia móvel, ainda que não obtenha a posse tranqüila, sendo prescindível que o objeto subtraído saia da esfera de vigilância da vítima para a caracterização do ilícito.
A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal também já se manifestou no mesmo sentido. Da ementa do HC 95.998/SP(6) destacamos:
1. É de se considerar consumado o roubo quando o agente, cessada a violência ou a grave ameaça, inverte a posse da coisa subtraída. Desnecessário que o bem objeto do delito saia da esfera de vigilância da vítima.
O simples fato de a vítima comunicar imediatamente o ocorrido à polícia, com a respectiva captura do acusado nas proximidades do local do crime, não descaracteriza a consumação do delito.
Tecnicamente o caso descrito (subtração e imediata perseguição, sem ter havido posse tranqüila) constitui roubo tentado. Em, virtude de diretrizes ideológicas concluiu-se pela consumação.
Sem posse tranqüila (do bem subtraído) jamais se pode afirmar a consumação (material) do roubo, que exige lesão efetiva do bem jurídico tutelado pela norma penal. Como é possível considerar um crime consumado sem ter se completado a lesão ao bem jurídico protegido?
Várias são as teorias sobre a consumação (do roubo e do furto):
a) teoria da “aprehencio rei”: basta que se coloque a mão na coisa (que se pegue a coisa) e o delito já se consumaria. É uma teoria exagerada e equivocada porque a consumação exige a efetiva lesão ao bem jurídico;
b) teoria da “mottio”: bastaria a remoção da coisa, o seu deslocamento, para a consumação do crime. Quem admite que a mera “mottio” (remoção) já seria suficiente para a consumação do furto ou roubo também se equivoca (porque aí ainda não temos a lesão ao bem jurídico);
c) teoria da “ablatio”: a consumação exigiria a remoção assim como um efetivo uso da coisa, o início da venda coisa etc. Também é uma teoria equivocada porque antes da venda, do consumo etc. já pode ter havido consumação do crime;
d) teoria da “lotu pletatio”: a consumação exigiria a efetiva disposição (venda) da coisa (merece a mesma crítica da teoria anterior);
e) teoria da disponibilidade: o sujeito tem a posse tranquila da coisa e dela se apodera, ou seja, tem sua total e tranquila disponibilidade. O sujeito tem a disponibilidade da coisa quando pode dizer “posso usufruir, posso vender, posso consumir a coisa, estou livre para fazer tudo isso mas não quero”.
A consumação do furto ou do roubo é o contrário da tentativa (em geral) onde o sujeito diz “quero consumar, mas não consigo” (mas não posso). Na desistência voluntária ele diz “posso consumar, mas não quero”. No roubo ou no furto a consumação se dá quando o agente diz “posso usufruir, tenho liberdade para isso, estou tranquilo com essa coisa, mas não quero neste momento”.
Quem é surpreendido com a coisa quando está correndo, quando está escapando, quando está deixando o local dos fatos, quando está fugindo, quando está se esquivando da vítima ou dos policiais, quando está sendo perseguido, quando está se distanciando do local dos fatos etc. claro que não tem a disponibilidade da “res” (da coisa), logo, estamos ainda na esfera da tentativa.
Totalmente equivocada (com a devida vênia) a decisão da Quinta Turma do STJ (STJ, REsp 1.184.444/RS, Quinta Turma, rel. Min. Arnaldo, Esteves Lima, j. 17/06/2010).
O fundo ideológico punitivista ou populista penal (ideologia do inimigo, que constitui a base do Direito penal do inimigo, que integra o populismo penal) está mais do que evidente.
Confundiu-se crime material com crime formal, consumação formal com consumação material, crime de lesão com crime de perigo. Conceitos dogmáticos (técnico-jurídicos) elementares foram menosprezados na decisão.
Em virtude do preconceito ideológico, resultaram atropelados conceitos essenciais do Direito penal. A ideologia (do inimigo) gera, muitas vezes, verdadeiro eclipse da ciência (penal), numa espécie de obscuridade voluntária, resultante da distorção de conceitos.
O pior cego, também quando se trata do poder punitivo do Estado, é o que não quer enxergar. Sabe que tecnicamente está errado, mas não tem predisposição para superar seus prejuízos (pré-juízos) ideológicos.
Quando se consuma o delito de roubo (próprio)? Ora, cuidando de delito material (que exige resultado naturalístico para a consumação), parece evidente afirmar que o roubo próprio consuma-se no momento em que ocorre a lesão patrimonial.
Não se trata de crime de perigo (que se consumaria com o simples desvalor da conduta dotada de periculosidade para o bem jurídico). Não se trata de crime formal (que também se consumaria com o simples desvalor da conduta). Não se pode nunca confundir o roubo (CP, art. 157) com a extorsão (CP, art. 158).
Sob o enfoque naturalístico a extorsão é crime formal (não necessita de resultado naturalístico para se consumar). Sob o enfoque jurídico a extorsão é um crime de perigo (não se exige lesão do bem jurídico patrimonial, basta seu efetivo risco). O roubo (distintamente) é crime material (exige resultado naturalístico para se consumar) e de lesão (exige lesão efetiva ao bem jurídico patrimônio).
Conclusão: sem a efetiva (real, concreta e comprovada) lesão patrimonial não há que se falar em roubo (próprio) consumado, que exige desvalor da conduta (conduta perigosa para o bem jurídico) mais desvalor do resultado (lesão patrimonial efetiva).
Enquanto o agente não tem a posse tranqüila da coisa subtraída (a sua disponibilidade) não há que se falar em consumação, porque ainda não se concretizou o desvalor do resultado (a lesão).
Houve um período histórico em que a jurisprudência brasileira era pra&s,hy;ticamente unânime (nessa matéria de consumação do roubo ou do furto) na adoção da teoria da disponibilidade (posse tranquila da coisa).
Essa é a teoria correta. Com o aumento da violência no nosso país a jurisprudência foi se flexibilizando. Da teoria da disponibilidade (posse tranquila da res) passou-se para a teoria da “mottio” (remoção) e agora para a teoria da “aprehencio”.
A jurisprudência, na medida em que a violência vai explodindo, vai antecipando o momento consumativo do furto ou do roubo. Com isso pune-se mais e prende-se mais.
Quando este fenômeno acontece violando-se a lógica das coisas, a natureza das coisas, menosprezando-se categorias penais já bastante estudadas (conceitos de lesão e de perigo, de crime formal e material etc.), não há nenhuma dúvida que estamos diante de mais uma manifestação do populismo penal (que conta com uma ideologia bem definida: punitivismo e penitenciarismo ao extremo, ainda que se saiba que o presídio não recupera ninguém).
Notas:
(1) STJ, REsp 1.184.444/RS, Quinta Turma, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 17/06/2010.
(2) CUNHA, Rogério Sanches. Direito penal: parte especial. 3.ª ed. São Paulo: RT, 2010, p. 141.
(3) NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 10.ª ed. São Paulo: RT, 2010, p. 734 e 755.
(4) STJ, REsp 1.098.759/RS, Quinta Turma, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 11/05/2010, DJ 31/05/2010.
(5) STJ, REsp 1.098. 857/RS, Sexta Turma, rel. Min. Og Fernandes, j. 01/06/2010, DJe 28/06/2010.
[6] STF, HC 95.998-9/SP, Primeira Turma, rel. Min. Carlos Britto, j. 12/05/2009, DJe 108, 12/06/2009.
Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, diretor-presidente da Rede de Ensino LFG e co-coordenador dos cursos de pós-graduação transmitidos por ela. Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001). www.twitter.com/ProfessorLFG. www.blogdolfg.com.br
Pesquisadora: Christiane de O. Parisi Infante.