Em 18 de maio de 2010, no Habeas Corpus 103.544, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela desnecessidade da apreensão e realização da perícia na arma para a aplicação da causa de aumento de pena prevista no inciso I, do § 2.º, do art. 157, do Código Penal (CP)(1).
No caso apreciado, o paciente foi denunciado pela suposta prática do crime de roubo, mediante grave ameaça exercida com o emprego de uma faca, sendo condenado em primeiro grau como incurso no tipo do art. 157, § 2.º, I, do CP. A impetrante sustentava a necessidade de apreensão da arma e realização de perícia para se ter a certeza do potencial lesivo do instrumento empregado no roubo, com o fim de aplicar a majorante.
Vale conferir a ementa:
EMENTA: PENAL. PROCESSUAL PENAL. RHC. ROUBO MAJORADO PELO EMPREGO DE ARMA. APREENSÃO E PERÍCIA PARA A COMPROVAÇÃO DE SEU POTENCIAL OFENSIVO. DESNECESSIDADE. CIRCUNSTÂNCIA QUE PODE SER EVIDENCIADA POR OUTROS MEIOS DE PROVA. PRECEDENTES. RECURSO DESPROVIDO. I – Não se mostra necessária a apreensão e perícia da arma empregada no roubo para comprovar o seu potencial lesivo, visto que essa qualidade integra a própria natureza do artefato. II – Lesividade do instrumento que se encontra in re ipsa. III – A majorante do art. 157, § 2.º, I, do Código Penal, pode ser evidenciada por qualquer meio de prova, em especial pela palavra da vítima – reduzida à impossibilidade de resistência pelo agente – ou pelo depoimento de testemunha presencial. IV – Recurso desprovido.
Segundo o relator do Recurso Ordinário em Habeas Corpus 103.544, exigir uma perícia para atestar a potencialidade lesiva da arma empregada no roubo estimularia o criminoso a desaparecer com ela, o que faria com que a qualificadora do art. 157, § 2.º, I, do CP, dificilmente fosse aplicada. O relator ainda recorda que a causa de aumento de pena traduz a mensuração de culpabilidade: “quando o caso se refere ao emprego de arma para a execução do crime, o sistema penal prevê punição mais severa porque o agente vence a resistência, intimida a vítima, produz medo, tolhe ou imobiliza o sujeito passivo”.
No mesmo sentido entendeu a Primeira Turma do STF(2) no julgamento do HC 97.420. Do voto do relator destacamos:
Com efeito, aquela decisão encontra-se motivada a justificar a formação de seu convencimento, inclusive com base na jurisprudência desta Suprema Corte, fixada no sentido de que “o reconhecimento da causa de aumento prevista no art. 157, § 2.º, I, do Código Penal prescinde da apreensão e da realização de perícia na arma, quando provado o seu uso no roubo, por outros meios de prova” (HC n.º 99.446/MS, Segunda Turma, Relatora a Ministra Ellen Gracie, DJe de 11/9/09).
Entendimento semelhante foi defendido pela Segunda Turma (HC 99446/MS, rel. Min. Ellen Gracie, j. 18/08/2009, DJe n.º 171, 11/09/2009) e pelo Pleno do STF (HC 96099/RS, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 19/02/2009, DJe n.º 104, 5/06/2009).
Em sentido contrário, a Segunda Turma do STF, por empate na votação, deferiu a ordem de habeas corpus(3). Segundo os Ministros Eros Grau e Cezar Peluso é ilegal a aplicação da causa de aumento de pena prevista no art. 157, § 2.º, inc. I, do CP sem que a arma de fogo utilizada tenha sido apreendida. Em sentido contrário votaram a Min. Ellen Gracie e o Min. Joaquim Barbosa. Eis a ementa:
EMENTA: HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. ROUBO. CAUSA DE AUMENTO DE PENA PREVISTA NO ART. 157, § 2.º, I, DO CP. COMPROVAÇÃO DA POTENCIALIDADE LESIVA DA ARMA DE FOGO. NECESSIDADE. 1. A aplicação da causa de aumento de pena prevista no artigo 157, § 2.º, inciso I, do CP, pressupõe a potencialidade lesiva da arma de fogo, que somente pode ser comprovada através do exame pericial.
Precedente. 2. A intimidação e o temor provocados na vítima pelo uso da arma compõem o próprio núcleo do tipo penal [violência ou grave ameaça], não se prestando a qualificar o crime. Ordem deferida.
Prevalece no STF o entendimento segundo o qual é prescindível a apreensão e perícia nas armas utilizadas para a prática do crime de roubo, especialmente quando há outros meios de prova que atestem a ocorrência dos fatos delituosos e de suas circunstâncias.
Potencialidade lesiva (da arma), que deve ser devidamente comprovada no processo, não se confunde com poder de intimidação (da mesma arma). A criminalização da arma de fogo e a sua incidência como causa de aumento de pena, não tem como fundamento esse poder de intimidação (fundado nas teorias subjetivistas, que alimentam o danoso Präventionstrafrecht), senão a sua potencialidade lesiva concreta (teorias objetivistas, que demarcam o Verletzstrafrecht)(4).
Não há como reconhecer a majorante do emprego de arma sem a constatação da sua potencialidade lesiva (por perícia ou outro meio de prova). Em regra, é indispensável a realização de perícia. Pela perícia pode-se constatar, por exemplo, que a arma estava desmuniciada ou quebrada ou inapta, fatos esses que afastam, necessariamente, a majorante. Não havendo perícia, outros meios de prova são admitidos: prova testemunhal, declarações da vítima etc. O fundamental é comprovar, no processo, que a arma tinha potencialidade lesiva concreta.
Não se pode esquecer que o Direito penal é guiado pelo princípio da ofensividade do fato (ou lesividade), segundo o qual não há crime sem ofensa a um bem jurídico (nullum crimen sine iniuria).
Como regra geral, é a apreensão e perícia (positiva) da arma que constata a sua efetiva potencialidade lesiva. Essa perícia se torna desnecessária quando as circunstâncias do fato comprovam, inequivocamente, essa potencialidade lesiva (por exemplo: houve um disparo com a arma de fogo).
Dispensar a perícia e não exigir a devida comprovação da potencialidade lesiva da arma significa secundar (compartilhar) o populismo penal que tomou conta do Brasil e do mundo. Significa não fazer resistência a esse movimento avassalador e nefasto, que (como bem explicam Elbert e Balcarce) vende e difunde, a torto e a direito, a ideia de que todos os males da insegurança pública podem e devem ser resolvidos, facilmente, com mais leis punitivistas e exemplares, que confia na intensificação do controle e do poder punitivo sob a égide do movimento da lei e da ordem, não apenas, mas sobretudo contra os mais débeis, que é desenhado e imposto por pequenos setores contra o resto da população, que importa, com pouco critério e de forma aloprada, políticas repressivas do “Primeiro Mundo” (tolerância zero, três delitos e prisão perpétua etc.), que se caracteriza pela mais absoluta improvisação legislativa, que difunde o terror punitivo lastreado na doutrina da sociedade de riscos (Ulrich Beck), que leva o bem jurídico “segurança pública” a limites inimagináveis, que persegue o estranho ou o inimigo, especialmente com medidas de segurança típicas do Direito penal do inimigo, que flexibiliza e relativiza os direitos e garantias fundamentais do investigado ou acusado (transformando-os em vítimas, claro), que procura abafar hermeticamente as vozes divergentes do mundo acadêmico e doutrinário, que tenta submergir os defensores do Estado de Direito, que aniquilou todo discurso que defende o Direito penal como limite ao poder punitivo estatal (ao poder de polícia) (Zaffaroni), que se curva e se guia pelo clamor popular, ainda quando infundado ou irracional, que difunde e espalha por toda parte o medo, sobretudo com a conivência da mídia, como combustível para novas reformas legislativas, que não observa os princípios limitadores do Direito penal (proporcionalidade, ofensividade, culpabilidade, responsabilidade pessoal etc.), que se submete ao clamor espetacularizado da mídia, que confia no permanente endurecimento das leis penais e processuais, no agravamento de penas, na criação indiscriminada de novos tipos penais, que dissemina a prisão cautelar (do presumido inocente) como medida social profilática, que é complacente e conivente com a tortura, típica do Estado de polícia e do terror, que concorda com toda discricionaridade imaginável para as instituições policiais, que busca estigmatizar e manchar a reputação dos juízes, professores e doutrinadores garantistas, taxando-os de defensores dos direitos humanos dos bandidos (sic), que concorda com a administrativização do direito penal etc. As vozes dissidentes (contra esse movimento atropelador) emitem sons cada vez menos audíveis…
Notas:
(1) STF, Recurso Ordinário em Habeas Corpus 103.544/DF, Primeira Turma, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 18/05/2010, DJe n.º 105, 11/06/2010.
(2) STF, HC 97.420/SP, Primeira Turma, rel. Min. Dias Toffoli, j. 23/02/2010, DJe n.º 50, 19/03/2010.
STF, HC 96.865-1/SP, Segunda Turma, rel. Min. Ellen Gracie, rel. para o acórdão Min. Eros Grau, j. 31/03/2009, Dje n.º 148, 7/08/2009.
GOMES, Luiz Flávio. Roubo: imprescindibilidade da apreensão e perícia da arma de fogo para o aumento da pena. Disponível em: http://www.lfg.com.br, 7 abr. 2009. Acesso em: 5 jun. 2010.
Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito Penal pela USP, diretor-presidente da Rede de Ensino LFG e co-coordenador dos cursos de pós-graduação transmitidos por ela. Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001).
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