Em minha vivência profissional diária, na condição de professor e de advogado, tenho me defrontado com duas situações que me têm chamado a atenção e, até certo ponto, me preocupado. A primeira, diz respeito à maneira como alguns professores encaram os pedidos de revisões de provas feitos pelos alunos, nem sempre com a compreensão que o assunto exige, e, a segunda, refere-se à forma como alguns julgadores enfrentam a oposição dos embargos declaratórios pelas partes.
A princípio, devo registrar que esses recursos são previstos nos dispositivos legais/regulamentares próprios. A possibilidade de pedir revisão de provas consta nos regulamentos das instituições de ensino e os embargos declaratórios estão previstos no artigo 535, do Código de Processo Civil.
Tenho a impressão de que pedidos de revisão de provas provocam em alguns professores o mesmo efeito que os embargos declaratórios a uma parcela da magistratura, qual seja, são recebidos como críticas dos critérios de avaliação e da prestação jurisdicional, o que não corresponde à realidade. Simplesmente, os que deles se valem procuram o aperfeiçoamento das avaliações e das decisões.
É evidente que, estando previstos, deverão ser utilizados pelos interessados sem qualquer receio de desagradar ou de imaginar que o exercício desses direitos poderá acarretar alguma represália. Afinal, vigora no Brasil o estado de direito, tão reclamando pela população e, principalmente, pela comunidade jurídica, nos chamados anos de chumbo.
No que diz respeito à revisão de provas, vejo a situação mais grave quando essa contrariedade ocorre no âmbito das faculdades de direito, por duas razões básicas: (I) porque o debate é da essência dos cursos jurídicos e (II) porque o profissional do direito que, no futuro, terá como missão defender ou acusar pessoas ou, então, julgar pessoas e fatos, deve se preparar para essas tarefas já nos bancos escolares.
É evidente que discordo do caráter mercantilista que vem sendo dado ao ensino no Brasil, o que leva a uma grande distorção, em detrimento da educação, da qualidade do ensino e da preparação do jovem para a vida profissional. Essa orientação, estimulada pelo poder público, vem transformando a educação em mero bem de consumo, assumindo o aluno a condição de simples consumidor. Mesmo que faculdades estejam sendo criadas como se supermercados fossem.
Ante a abrangência do Código de Defesa do Consumidor (Lei n.º 8.078/90), não se pode negar o caráter de prestador de serviços por parte dos estabelecimentos de ensino, sejam públicos ou privados, e, na outra ponta, o estudante na condição de consumidor desse serviço. Entretanto, a educação e o ensino não se esgotam numa simples relação de consumo; re-presentam uma atividade de magnitude muito superior e como tal devem ser tratados, já que a sociedade espera, além de bons consumidores, melhores profissionais. Que se considere a questão econômica, nada contra, o que quero dizer é que educação não pode ser encarada como mera relação de consumo, onde a supremacia do consumidor deve ser absoluta. O processo educativo tem aspectos mais elevados e responsabilidades para com a sociedade. Um ensino deficiente formará profissionais deficientes, o que não é bom para a cidadania, o cidadão e o próprio pais.
Por essas razões, o estudante, principalmente o de direito, deve ser estimulado ao debate durante o curso, não apenas ao debate de quem tem direitos como consumidor mas que tem direitos como cidadão, o que lhe outorga legitimidade para pedir esclarecimentos sobre notas que lhe tenham sido atribuídas e das quais discorde. Não quero dizer que o aluno deve contestar toda e qualquer nota ou mesmo os critérios de cada professor. O que pretendo é que se entenda que a revisão de prova é um instituto previsto no regulamento de todos estabelecimentos de ensino superior e, portanto, deve ser utilizado por seus destinatários, sem que isto seja entendido como crítica.
Da mesma forma e mais grave ainda, é a má vontade de alguns magistrados com a oposição dos embargos declaratórios, instituto criado pelo legislador do Código de Processo Civil de 1973.
O intuito do legislador não foi o de oferecer às partes um instrumento de crítica ao julgador. Ao contrário, o objetivo, como já percebido por magistrados de destaque, é o de possibilitar aos interessados numa lide condições para colaborar com o juiz, a fim de que se tenha a prestação jurisdicional mais eficaz, evitando-se futuras alega-ções de nulidades ou até mesmo o sacrifício de algum direito em jogo.
Ora, se dizemos e repetimos que a democracia deve ser exercida em sua plenitude, já que nos encontramos em pleno estado de direito, a utilização de qualquer recurso não pode ser enfrentada fora dos seus limites e das suas finalidades.
Ante uma nota que lhe pareça injusta, tem o aluno o direito de pedir ao professor que lhe preste os esclarecimentos que lhe pareçam adequados, corrigindo-a, se for o caso. Da mesma forma que, defrontando-se com uma decisão judicial que lhe pareça incompleta, omissa ou contraditória, a parte tem o direito de pedir ao seu prolator que lhe esclareça os pontos que julgar não esclarecidos. Além de direito das partes, os embargos declaratórios, também, representam dever, à luz do artigo 14, inciso I, e artigo 339, ambos do Código de Processo Civil. Não se olvidando do fato de que as decisões judiciais deverão ser fundamentadas,, à luz do artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal.
Para o advogado, ao qual compete esgotar todos os recursos e instâncias na defesa dos direitos e interesses de seu constituinte, opor esses embargos é um dever do qual não pode declinar, sob pena de responder por isso.
Especificamente em relação aos embargos declaratórios, a preocupação, felizmente, não é apenas minha, recomendando que se traga a matéria a debate. Tenho observado que os Tribunais Superiores, inclusive, o Colendo Supremo Tribunal Federal, têm se manifestado a respeito do assunto, procurando chamar a atenção dos julgadores para sua real finalidade. Em acórdão da lavra do ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, fica patente que aquela Alta Corte não ignora o tema, como se observa do seguinte acórdão: “Os embargos declaratórios não consubstanciam crítica ao ofício judicante, mas servem-lhe ao aprimoramento. Ao apreciá-los, o órgão deve fazê-lo com espírito de compreensão, atentando para o fato de consubstanciarem verdadeira contribuição da parte em prol do devido processo legal.” STF-2.a Turma, AI 163.047-5-PR-AgRg-Ecl, rel. Min. Marco Aurélio de Mello, j. 18.12.95, DJU 8.3.96, p. 6.23).
Na mesma linha de raciocínio, inclusive, com maior profundidade e em mais de uma oportunidade, tem se manifestado o Egrégio Tribunal Superior do Trabalho, o que se verifica da seguinte decisão unânime: “FUNDAMENTAÇÃO. ACÓRDÃO. DEFICIÊNCIA. EMBARGOS CONHECIDOS POR VIOLAÇÃO DO ART. 896 DA CLT. Os artigos 93, IX, da Constituição e 832 da CLT impõem ao Poder Judiciário o dever de fundamentar suas decisões. Cabe ao magistrado expor os fundamentos fáticos e jurídicos que geraram sua convicção exteriorizada no decisum, mediante análise circunstanciada das alegações formuladas pelas partes. No âmbito da instância extraordinária, revela-se ainda mais imperioso o fato de a fundamentação ser explícita e detalhada, ante a imprescindível necessidade do prequestionamento da matéria igualmente porque não pode o Juízo ad quem conhecer do recurso fora da realidade retratada pelo Juízo a quo (Enunciados 297 e 126 do TST). A persistência da omissão, pelo julgador, mesmo após a oposição de oportunos embargos declaratórios, opostos com objetivo de ver definida a moldura fático jurídica de aspectos relevantes da lide, constitui vício de procedimento que implica a nulidade da decisão proferida, ante a caracterização de inequívoca negativa de prestação jurisdicional. Nesse contexto, a recusa do Regional em responder aos declaratórios de fls. 524/526, não prequestionando todo o quadro fático dos autos, sobre o qual gira a demanda, configura, inquestionavelmente, negativa de prestação jurisdicional, com violação do artigo 832 da Consolidação das Leis do Trabalho. Diante do exposto, a e. Turma, ao não apreciar a preliminar de nulidade do acórdão do Regional, por negativa de prestação jurisdicional, com fulcro no art. 249, § 2.º, da CLT, sem o necessário provimento integral do recurso, quanto ao mérito, deixando de conhecer da revista do reclamado quanto aos demais temas a ela diretamente relacionados (prescrição total e integração de anuênios), incidiu em afronta ao art. 896 da CLT, ante a equívoca violação dos artigos 832 da CLT e 249, § 2.º do CPC. Recurso de embargos provido.” (TST-E-RR-698.698/00.4 – SDI-I. Rel. Min. Milton de Moura França. Julgado em 24.3.2003. Publicado no DJU em 21.3.2003, pág. 443).
Da mesma forma que um pedido de revisão de prova proporciona ao professor corrigir uma eventual nota injusta, os embargos declaratórios oferecem ao magistrado a oportunidade de entregar uma prestação jurisdicional eficaz e livre de qualquer vício ou nulidade, garantindo às partes, nas hipóteses cabíveis, o reexame da causa pelos Tribunais Superiores, já que o prequestionamento da matéria é requisito indispensável ao cabimento, para apreciação e julgamento, dos recursos extraordinários (REx, REsp e RR).
Dois outros temas estão na ordem do dia: a reforma do Poder do Judiciário e o seu controle externo. Esses assuntos estão a merecer um debate mais sério e aprofundado, pois como vem sendo colocado, a impressão que se tem é que somente a própria Justiça é a única responsável por suas mazelas, esquecendo-se os demais agentes que interferem na sua administração (Poder Executivo, Poder Legislativo e a comunidade jurídica como um todo). Da mesma forma, o controle externo do Judiciário vem sendo vendido como panacéia para solucionar tudo isto.
Antônio Dílson Pereira
é advogado e professor da Faculdade de Direito de Curitiba.