Retrospectiva: O Direito de Família em 2003

Em todo final de ano costumamos fazer uma retrospectiva dos fatos ocorridos no período que se encerra, destacando as novidades surgidas em cada área de atuação. Esta não é a regra do Direito, onde leis e ordenamentos jurídicos devem perdurar imutáveis para conferir a Sociedade o que denominamos estabilidade jurídica. Exatamente por isto, o ano de 2003 se diferencia dos anteriores ante a vigência do novo Código Civil Brasileiro que causou muita polêmica, especialmente no Direito Sucessório.

Quando da promulgação do Código Civil anterior no ano de 1916, certamente deve ter se passado a mesma balburdia jurídica que agora enfrentamos, com prós e contras e divergências que, embora parecessem irreconciliáveis, acabaram se moldando com o tempo, fossem pelos usos e costumes, fosse pela unificação da jurisprudência.

E isto ocorre porque as pessoas efetivamente alteraram a forma de se relacionar e cabe ao legislador buscar acompanhar estas modificações. Isto se dá desde os primórdios da História da civilização onde os vínculos familiares, diga-se de passagem, eram bem mais tumultuadas do que podemos imaginar e deixariam arrepiado qualquer cidadão comum nos dias de hoje. Rixas familiares sempre existiram e não são frutos da modernidade, mas da inseparável mesquinhez do ser humano. Guilherme, o Conquistador, mal havia herdado o trono britânico no ano de 1066 e seus herdeiros já faziam planos para garantir a própria sucessão. Seu filho Henrique I manteve um irmão – Roberto, duque da Normandia – prisioneiro por 28 anos e é suspeito de ter orquestrado o trágico “acidente” de caça que matou um terceiro irmão, Guilherme III, no ano de 1100. Estas e outras histórias verdadeiras são contadas no livro “Escândalos Reais” do escritor Michael Farquhar e são leitura obrigatória para quem pretende entender o gênero humano e a vida familiar.

O Código Civil de 1916 foi redigido sob a égide de Clóvis Bevilacqua, um dos mais renomados juristas daquela época. Se por um exercício de ficção trouxéssemos este insigne professor de Direito para os dias de hoje, ele ficaria arrepiado com o que se encontra disposto no novo Código Civil e não tardaria a nos qualificar como depravados, exigindo seu retorno imediato à civilidade daquela época. Pois no ano de 1916 a filha que fosse deflorada ainda na casa paterna ao certo poderia ser objeto de deserção, o lar conjugal era conduzido exclusivamente pelo marido varão, o casamento era indissolúvel e a união estável impensável. Tudo isto mudou, e muito. No campo da Família e Sucessões vale destacar as principais modificações trazidas pelo novo Código Civil:

1- A direção da sociedade conjugal será exercida, em colaboração, pelo marido e mulher, em condições de absoluta igualdade e sempre no interesse do casal e dos filhos, ficando a expressão pátrio poder substituída pelo poder familiar.

2- Os cônjuges são obrigados a concorrer, na proporção de seus bens e dos rendimentos do trabalho, para o sustento da família e a educação dos filhos, qualquer que seja o regime patrimonial.

3- É possível alterar o regime de casamento por solicitação do casal ao Juiz competente, ressalvados os direitos de terceiros.

4- Qualquer uma das partes pode adotar o sobrenome da outra, não sendo obrigatória a opção apenas pelo do marido.

5- A mulher perde o direito à preferência legal na guarda dos filhos do casal, que poderá ser atribuída à qualquer uma das partes que comprovar ter melhores condições de exercê-la.

6- A união estável entre pessoas desimpedidas é reconhecida e confere direitos patrimoniais e sucessórios ao companheiro.

7- A viúva ou o viúvo, que não eram herdeiros diretos, passaram a sê-lo. Ou seja: o cônjuge sobrevivente torna-se herdeiro necessário, concorrendo com descendentes ou ascendentes em parte do acervo hereditário do falecido.

8- A maioridade civil é antecipada para os 18 anos de idade, facultando-se a emancipação aos 16 anos.

Todas estas alterações, ainda que já estejam em pleno vigor, exigem uma adaptação não apenas da sociedade, mas dos próprios advogados, arraigados ainda no ordenamento civil anterior. Mas certamente os novos conceitos trazidos pela legislação atual atendem de maneira muito mais próxima às relações familiares modernas do século XXI.

Luiz Kignel

é membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família e advogado.
kignel@plk.adv.br

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