Cuida-se de tema que está na pauta dos grandes jornais, revistas e noticiários televisivos do Brasil: a reserva de cotas para negros em universidades, públicas e particulares, e nos concursos públicos.
Necessário fazer um breve relato sobre como surgiu essa espécie de ação afirmativa e no que consiste. O sistema de cotas teve sua origem nos Estados Unidos da América do Norte, embora nunca tenha existido uma lei federal que o estabelecesse. Mas em todos os níveis de governo dos EUA, em empresas e em universidades diferentes práticas de ação afirmativa são exercidas para cumprir a Lei dos Direitos Civis e reduzir a discriminação, que teve início, em 1961, com a criação do Comitê para Oportunidades Iguais de Emprego pelo presidente John Kennedy.
No Brasil, a finalidade da reserva de cotas para negros é resgatar uma imensa dívida da sociedade para com os negros. Recorda-se que os negros foram seqüestrados na África, famílias foram separadas, muitos morreram nas ações de captura, transportados em navios (apelidados como “negreiros”), sofrendo toda espécie de privação e humilhação, física e moral (açoites e vários tipos de tortura, prisões, marcas de ferro em brasa no corpo para colocar a marca do “proprietário”, sevícias, estupros etc)(1), para trabalharem, como escravos, num país estranho e distante: o Brasil.
Em 13 de maio de 1888, veio a lume a Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel, que aboliu a escravidão no Brasil. Nosso país, foi a última nação a abolir a escravatura no mundo. Em razão disso, os negros foram entregues à própria sorte, pois não foram levados de volta ao país de origem nem receberam qualquer tipo de compensação pelos prejuízos psicológicos, físicos e materiais que sofreram. A maioria ficou trabalhando nas mesmas fazendas onde estavam, pois não tinham para onde ir, nem sabiam para onde poderiam ir. Ou então, saiam pelas estradas em busca de terrenos baldios onde pudessem viver. Caíram, então, em tal condição de miserabilidade que a população negra reduziu-se substancialmente(2). Enfim, permaneceram no Brasil por falta de opção.
Hoje, a raça negra integra o imenso leque de povos que formam o Brasil. Contudo, é fácil perceber a situação de desvantagem dos negros em relação às demais raças. Basta ver que na USP (Universidade de São Paulo), os negros são apenas 1,39% dos trinta e nove mil alunos(3), o que é irrisório ao se verificar que 45% da população brasileira é negra(4). Demonstra, ainda, a desigualdade social: dos vinte e quatro milhões de analfabetos existentes no Brasil, 61% são negros.
Mas é na renda mensal que as disparidades gritam mais alto: 60% dos negros em atividade econômica percebem menos de dois salários mínimos mensais e, apenas, 40% ganham mais. Dos brancos, 40% percebem menos de cinco salários mínimos e 60% ganham mais. Como se vê, os números são invertidos.
Nas camadas mais ricas, os negros são espécies raras: dos que ganham mais de trinta salários mínimos por mês, somente 11% são negros.
Em anos de estudos, pressupõe-se serem necessários pelo menos quatorze anos desde a entrada no ensino fundamental até terminar uma faculdade, sendo que apenas 14% dos estudantes que pertencem a esse grupo são negros.
Lendo cartas publicadas em jornais, percebe-se a falta de conhecimento, principalmente entre estudantes, que não sabem diferenciar a igualdade formal da igualdade material. Creio que não há dúvida que seria absurdo dar uma Ferrari para um competidor e um Fusca para o outro a fim de disputarem uma corrida e afirmar que ambos estão em igualdade de condições, pois cada um tem um automóvel(5). Nesse exemplo, existe igualdade formal (cada um tem um carro), mas não existe igualdade material (um deles possui condições muito melhores que o outro). A Constituição da República prevê que todos são iguais perante a lei, porém isso pressupõe que todos estejam em situação de igualdade material, quando houver desigualdade, o tratamento deve ser desigual.
Nesse sentido, é lapidar a lição do inesquecível Rui Barbosa(6):
A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade iguais, ou desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real.
Alguns dizem que a reserva de cotas não está prevista na Carta Constitucional. Esses esqueceram o conteúdo inscrito no art. 3.º, que expressa os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. Confira-se:
Art. 3.º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
…
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
…
Se os negros são a maioria da população mais pobre, em número proporcional muito superior ao que seria aceitável, evidente que a reserva de cotas tem respaldo constitucional ao almejar erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais.
O propósito utilitarista serve para fundamentar tanto a seleção por mérito como a ação afirmativa(7), cuja adoção (de uma ououtra)é de caráter político (oportunidade e conveniência), pois ambas buscam maximizar o bem estar coletivo, sendo que a primeira privilegia os mais capacitados intelectualmente, e a segunda, diminui as desigualdades sociais, o que redunda, também, na elevação do bem estar coletivo.
Os que proclamam que não existe discriminação racial no Brasil são desmascarados diante da vida real, ao agarrarem a bolsa ou fecharem o vidro do carro ao verem um negro se aproximar, ao se posicionarem contra o envolvimento amoroso de seus filhos, filhas, irmãos ou irmãs com pessoas da raça negra etc. É claro que existe uma profissão em que a mulher negra é valorizada: empregada doméstica. Dói, mas é verdade.
Esse tratamento favorável aos negros já é aplicável aos portadores de necessidades especiais e aos idosos, em outras leis, e nem por isso gerou polêmica. Mais uma prova da discriminação racial disfarçada que reina no Brasil.
Existem aqueles que afirmam que o negro será humilhado por ingressar na faculdade ou no serviço público pela reserva de cota. Ou ainda, que ficará estigmatizado em sua vida profissional. Creio que humilhante é não existir médico negro, juiz negro, promotor negro, advogado negro, dentista negro, veterinário negro, jornalista negro, funcionário público negro, na mesma proporção (aproximada) que deveria ser em relação à população brasileira, formada, repita-se, de 45% de negros.
As idéias daqueles que divagam sobre soluções genéricas do tipo: o que precisa é melhorar o nível de educação de toda a população carente, o que vai resolver é a melhor distribuição de renda, na verdade não querem mudar a situação atual. São os defensores do “status quo”, pois no final das contas não se faz nada além dos discursos. Os problemas estruturais que atingem toda a população não são desculpas para não fazer nada hoje. Faz-se o que é possível. Não é porque a ação afirmativa produz desconforto, tensão social ou está sujeita a críticas, que ela não deve ser implementada. Aliás, o negro não incomoda quando está lá na favela, agora quando ele vem ocupar vagas em boas faculdades e disputar bons empregos, daí o racismo se escancara. A reserva de cotas é uma ação temporária, pois quando o abismo financeiro e cultural que separa negros e brancos for suprimido, então haverá igualdade real entre eles, nessas condições a benesse será extinta, pois sua missão foi cumprida com êxito.
Talvez a questão mais polêmica do sistema de cotas seja em definir o critério de definição da raça negra. Os movimentos negros defendem o sistema de autodeclaração, pois o preconceito contra os negros seria tão forte que ninguém faria uma declaração falsa de ser negro. Infelizmente, penso que existem pessoas que mentiriam para obter uma vantagem indevida, pois impera no Brasil um individualismo exacerbado que quer levar vantagem em tudo. Creio que a melhor solução seria criar uma comissão da comunidade, composta de negros e brancos, para julgar os casos duvidosos e definir quem é negro, ou não. Um homem médio sabe perfeitamente distinguir um negro de um branco, de um asiático ou de um indígena. E nos casos em que haja inconformismo do rejeitado, basta utilizar o critério científico, porquanto a ciência dispõe de meios seguros para definição correta da ascendência racial do indivíduo(8), embora o resultado seja mais demorado e caro.
Conclusão: a reserva de cotas para negros é constitucional e necessária para possibilitar o ingresso deles nas melhores universidades e empregos, diminuindo a desigualdade social e econômica que foi impingida à raça negra desde a época da escravidão e promovendo a integração racial.
É o que pensamos sobre tema de suma importância social.
Notas
(1) O filme “Amistad”, de Steven Spielberg, é muito realista quanto à brutalidade da escravidão.
(2) RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: Evolução e o Sentido do Brasil, Companhia das Letras, 1995.
(3) Roberto Martins, historiador, em entrevista concedida à Revista Época, de 30/06/2001.
(4) Os dados de população racial e renda tem como fonte o IBGE (www.ibge.gov.br), tendo sido considerados os pardos juntamente com os negros, pois se considera que pardo não é raça, mas miscigenação dos negros com outras raças.
(5) Exemplo cunhado pelo historiador Roberto Martins, em entrevista concedida à Revista Época, de 30/06/2001.
(6) BARBOSA, Rui. Oração aos Moços, Ediouro Publicações S/A, 16.ª edição, 1999.
(7) DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio, Editora Martins Fontes, 1.ª edição, 2000.
(8) AMORIM, Pierre Souto Maior Coutinho de. Sistema de Cotas. Brasília: Revista Consulex, 18/03/2002.
Márcio Augusto Nascimento é juiz federal substituto da 2.ª Vara Federal de Londrina-PR, trabalho elaborado em maio de 2004.