Desde a Polícia Federal até o Supremo Tribunal Federal, passando pelo Ministério da Justiça, Ministério Público e o Congresso Nacional, atingindo a sociedade organizada, através da OAB, CNBB, Centrais e Confederações Sindicais de trabalhadores e empregadores, os fatos relacionados com o processo de corrupção em setores essenciais da vida nacional e o desmonte político-partidário, movem o país para um novo patamar de afirmação democrática. A imprensa tem desempenhado papel relevante, possibilitando o conhecimento minucioso e em amplitude nacional de todas as questões, interpretações e posicionamentos sobre tais fatos. A somatória de centenas de vigorosas ações do Ministério Público e da Polícia Federal no combate à corrupção generalizada, com a decisiva ação do STF e do Congresso Nacional, formam um quadro que, embora inicial e parcial, ensejam a reflexão sobre a necessidade de ações da sociedade civil organizada no enfrentamento da crise, como recentemente alertaram juristas reunidos em São Paulo, propondo que da indignação se passe à ação.
Vícios histórico-estruturais
Essas ações organizadas da sociedade civil se dirigem, em especial, em relação (1) ao atual sistema partidário, eleitoral e de representação parlamentar (2) em face ao sistema democrático de representação e implementação administrativa do setor público, excluídos que estão segmentos sociais fundamentais, como os trabalhadores e empresários (3) no que se refere ao sistema de um efetivo controle das contas, gastos e investimentos públicos e na destinação dos recursos públicos (4) avançando no sistema de controle da participação dos grandes grupos econômicos na vida político-partidária (5) e quanto no sistema de organização da empresa, dos trabalhadores e de suas organizações representativas (6) e, ainda, no sistema pesado e lento no plano do Judiciário.
Será necessária uma ampla e profunda ação contra vícios histórico-estruturais que debilitam os sistemas apontados, que não serão corrigidos com remendos constitucionais ou com a revisão da Carta Magna. Trata-se de reconstruir o conjunto desses sistemas, de modo a extrair da velha condição o que se provou de saudável e de introduzir o novo colhido das experiências do mundo em transformação. A análise teórico-prática de cada setor se impõe como condição necessária ao diagnóstico social. Recente pesquisa do Ibope assinala a fragilidade das instituições diante dos olhos do povo, em que apenas 9% confiam nos políticos, rejeitados por 90% da população, assim como, com a mesma sorte, os partidos políticos rejeitados por 88%, a Câmara dos Deputados por 81%, o Senado Federal por 76% e o Poder Judiciário por 51% (pesquisa entre 18/22.08.05).
Um fórum nacional
Há indicativos visíveis pela necessidade de um fórum nacional de todos os setores sociais no debate destas questões que alicercem um novo pacto social. Dentre as diretrizes políticas principais que norteavam a proposta de governo do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva, destacava-se a idéia de pacto nacional, contrato social e/ou negociação nacional.
Na sua ?Carta ao Povo Brasileiro?, em 22 de junho de 2002, Lula faz o chamamento a todos: ? Será necessária uma lúcida e criteriosa transição entre o que temos hoje e aquilo que a sociedade reivindica. O que se desfez ou se deixou de fazer em oito anos não será compensado em oito dias. O novo modelo não poderá ser produto de decisões unilaterais do governo, tal como ocorre hoje, nem será implementado por decreto, de modo voluntarista. Será fruto de uma ampla negociação nacional, que deve conduzir a uma autêntica aliança pelo país, a um novo contrato social, capaz de assegurar o crescimento com estabilidade?.
No seu primeiro pronunciamento à Nação, como presidente eleito, no dia 28 de outubro, Lula reafirmava seu pensamento: ?Continuaremos a ter atuação decidida no sentido de unir as diversas forças políticas e sociais para construir uma nação que beneficie o conjunto do povo. Vamos promover um Pacto Nacional pelo Brasil, formalizar o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social e escolher os melhores quadros do Brasil para fazer parte de um governo amplo, que permita iniciar o resgate das dívidas sociais seculares. Isso não se fará sem a ativa participação de todas as forças vivas do Brasil, trabalhadores e empresários, homens e mulheres de bem?.
O Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social formatado pelo governo poderia ter sido o espaço de discussão sobre medidas relacionadas com o pacto nacional, entre os setores empresariais e sindicalistas, e representantes de variados segmentos sociais, mas o diálogo foi insuficiente e as propostas sobre variados temas abordados não se constituíram em base de entendimento entre as partes convocadas e o governo federal, a não ser a questão do combate a fome.
A Nova República e o pacto constitucional
Historicamente, antes do governo Lula, houve a tentativa de pacto social proposta pelo ex-presidente José Sarney, em dezembro de 1986, quando afirmava: ?Todo o esforço que o Estado faz, a partir da Nova República, é para restaurar a convivência nacional. Antes, havia um confronto entre Estado e sociedade. Hoje, vivemos numa sociedade solidária, onde todos estão opinando em busca de rumos?(Folha de S.Paulo, 20.12.86). Pretendia-se um pacto de curta duração, de três a seis meses, basicamente sobre as questões econômicas e foram convidadas as representações dos trabalhadores e dos empregadores. A proposta não obteve êxito, especialmente pelas diferenças de ponto de vista sobre as condições básicas de um acordo sobre reajuste de salários e não pagamento da divida externa. Naquela oportunidade, as condições eram mais difíceis que as atuais, pelo fato de que a sociedade emergia da ditadura militar e ainda não houvera tempo para o exercício pleno das liberdades democráticas. Pode-se considerar que o pacto nacional, com contrato social, foi alcançado parcialmente com a promulgação da Constituição de 05 de outubro de 1988. Ao definir juridicamente a constituição da ?nova? sociedade, isto é, a sociedade que emergiu de 25 anos de ditadura militar, a Carta de 88 estabeleceu, em todos os campos, os parâmetros da convivência nacional e os direitos e deveres sociais, recompondo e finalizando a primeira etapa do processo iniciado com a lei da anistia política de 1979 e abrindo caminho que possibilitasse um novo acerto entre as classes sociais.
As diferenças econômicas, sociais e culturais
Esse acerto foi gradativamente se tornando cada vez mais difícil, diante do avanço do neoliberalismo, gestando uma sociedade em que as diferenças econômicas, sociais e culturais foram o predominante na década de noventa. O acervo negativo herdado pelo governo do Presidente Lula obrigou a série de medidas corretivas no campo econômico, visando o equilíbrio das contas públicas, o controle dos gastos, o combate a inflação, a retomada dos índices da produção, a geração de mais empregos e atividades geradoras de ganhos, o incentivo aos investimentos locais e internacionais. Atingido este patamar, inesperadamente a sociedade é marcada pela crise de ordem moral no campo político e de diversas operações fraudulentas no campo econômico. Tratando-se de uma crise profunda, mas sem atingir a base econômica sustentada pela política do governo Lula, passou-se a refletir sobre a necessidade de uma efetiva ação transformadora global.
A tarefa complexa do pacto social
Por isso, ao se trabalhar sobre a idéia de uma ação transformadora integral e de assinalar a necessidade de um pacto social, ou nacional, primeiro há que se verificar em que sociedade vivemos e que, diante de diferenças profundas, e do momento de crise, que acerto será possível. Tarefa complexa a que são chamados os homens de boa vontade em um momento excepcional da vida brasileira. Desafio colocado às nossas principais lideranças que terão a grande oportunidade de demonstrar que a experiência acumulada neste recente período democrático e as lições colhidas do processo eleitoral serão aplicadas em benefício do conjunto de nosso povo.
Assinalamos anteriormente que ?a experiência histórica de pactos, na Europa e na América Latina, permite avançar para alguns parâmetros que poderão ajudar nessa caminhada. O primeiro, e mais significativo, é o de que nenhum grupo, segmento ou representação social poderá estar fora da conversação e dos encaminhamentos concretos. O segundo, de grande valia, a capacidade dos mediadores, lastreados em conhecimentos teóricos e de vida para bem manejar os procedimentos. O terceiro, de igual importância, saber indicar as metas factíveis e o período em que as mesmas deverão ser alcançadas?.
Por certo, a estes elementos outros serão somados, colhidos das lições já apreendidas por outras sociedades nas suas tentativas de encontrar pontos de identificação sobre os quais foram erguidas as bases de um entendimento duradouro. Missão difícil, mas necessária, diante dos acontecimentos atuais que abalam a nossa sociedade, mas que levam a refletir sobre a necessidade de reconstrução que irá atingir, não apenas o campo da organização política, mas da organização econômico-social.
Os desdobramentos da crise e cenários de avaliação
A crise política poderá ter desdobramento imprevisível, pois focada nas incertas decisões da Câmara dos Deputados no que se refere à cassação de parlamentares. E agravada pelo envolvimento do presidente da Câmara dos Deputados Severino Cavalcanti no processo de corrupção. Mesmo que o resultado seja a ampla cassação de parlamentares e do presidente da Câmara dos Deputados, será insuficiente face a uma crise que não é apenas de conduta, no âmbito do decoro parlamentar, mas vai muito além, pois envolve o conjunto do sistema político-partidário-eleitoral, assim como o sistema de organização econômico-social. Os cenários que devem ser avaliados indicam que as organizações da sociedade civil, em especial as representações dos empresários e dos trabalhadores, deverão se movimentar rumo a propostas que possibilitem a formação de um fórum nacional que implemente as idéias da reconstrução nacional, como sólidas bases econômico-sociais e de firme sustentação política.
Aprendendo com nossos erros
O fio condutor imediato está visível na história recente da luta contra o regime militar, ou seja, a quebra de barreiras corporativas, possibilitando o encontro das representações de todos os segmentos sociais. Sabemos que o novo nasce do velho. Ao focar a necessária ultrapassagem do velho, para seguir a transformação para o novo, lembre-se Maquiavel: ?Costumam dizer os homens prudentes, e não é por acaso nem sem mérito, que quem deseje ver aquilo que há de ser, considere aquilo que foi porque todas as coisas do mundo, em cada tempo, têm seu próprio embate com os antigos tempos. O que nasce porque, sendo elas operadas pelos homens, que têm e tiveram sempre as mesmas paixões, convém por necessidade que lhe suscitem o mesmo efeito?. É o que se tem denominado de aprender com as lições emanadas de nossos erros.
Edésio Passos é advogado, ex-deputado federal (PT/PR).
E.mail: edesiopassos@terra.com.br