Repercussão jurídico-probatória e direito fundamental à segurança pública

A Lei n.º 9.296/96 regulamenta o inciso XII, parte final, do artigo 5.º da CF/88, cujo texto constitucional determina que “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”.

Diz o artigo 1.º, caput, da Lei n. 9.296/96: “A interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, para prova em investigação criminal e em instrução processual penal, observará o disposto nesta Lei e dependerá de ordem do juiz competente da ação principal, sob segredo de justiça”.

Todavia, em paradigmática decisão, o pleno do Supremo Tribunal Federal passou a admitir a prova emprestada, da órbita penal para a cível, em matéria de interceptação telefônica.

Cuida-se do fenômeno da repercussão jurídico-probatória, na expressão usada pelo Ministro Cezar Peluso, em seu voto. Esse histórico julgamento se deu no dia 25/4/2007, quando, resolvendo a primeira questão de ordem, por maioria e nos termos do voto do relator Cezar Peluso, o STF autorizou, sob dever de resguardar o sigilo, o encaminhamento de cópias do Inquérito n.º 2.424/RJ ao Conselho Nacional de Justiça e ao Superior Tribunal de Justiça, os quais as haviam solicitado, apesar de os autos estarem revestidos de sigilo legal em razão das interceptações telefônicas e escutas ambientais judicialmente decretadas.

Pretenderam o CNJ e o STJ avaliar os fatos ali contidos e, conseqüentemente, a necessidade de instauração, ou não, de processo administrativo, a fim de apurar infrações disciplinares cometidas por magistrados.

Em questão de ordem suscitada pelo relator, o STF reconheceu a possibilidade de, a partir de informações obtidas mediante interceptação telefônica e escuta telefônica devidamente autorizadas por autoridade judicial para fins de investigação criminal, utilizar tais dados em procedimento administrativo disciplinar contra as mesmas pessoas com relação às quais foram colhidos.

Veja-se trecho da ementa, cuja íntegra das transcrições dos debates é de leitura obrigatória: “Dados obtidos em interceptação de comunicações telefônicas e em escutas ambientais, judicialmente autorizadas para produção de prova em investigação criminal ou em instrução processual penal, podem ser usados em procedimento administrativo disciplinar, contra a mesma ou as mesmas pessoas em relação às quais foram colhidos” (STF, Tribunal Pleno, Inq.-QO n. 2.424/RJ, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 25/4/2007, DJ 24/8/2007, p. 55).

É preciso alargar a visão quanto aos direitos fundamentais para além de patamares individualizados, englobando os demais componentes da sociedade. Não se demonstra coerente enxergar os direitos fundamentais somente como faculdades/poderes titularizados pelos cidadãos em face do Estado.

Esses direitos também conservam a sua fundamentalidade quando enfocados a partir da comunidade frente aos próprios indivíduos, em conformação com a carga axiológica correspondente e a consecução das finalidades por ela legitimadas.

Como se vê, o direito fundamental à segurança pública há de ser ponderado, no caso concreto, com os direitos fundamentais dos investigados ou acusados (dignidade, intimidade, contraditório etc.).

A propósito, colisões de direitos fundamentais devem ser resolvidas mediante a aplicação do princípio da proporcionalidade/razoabilidade, que comporta os requisitos da: a) adequação (o meio utilizado deve ser apto a alcançar o resultado pretendido); b) necessidade (inexistência de outra medida menos gravosa capaz de produzir os mesmos efeitos); e c) proporcionalidade em sentido estrito (ponderação para aferir se o benefício obtido supera o ônus ocasionado).

Ponderando bens jurídicos em determinado caso concreto, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a tutela à persecução penal pública era mais relevante do que o direito à intimidade, admitindo assim a realização de exame genético, embora em contraposição à vontade da titular desse direito, a mexicana Glória Trevi.

Exemplificando, Eduardo Cambi reporta que “Na Reclamação 2040-DF, o STF determinou que fosse coletado material biológico da placenta, com o propósito de se fazer o exame de DNA, para averigüação de paternidade do nascituro, embora a extraditanda – a cantora Glória Trevi – se opusesse.

O STF tutelou a moralidade pública, a persecução penal pública e a segurança pública, que são bens jurídicos da comunidade, bem como o direito à honra e à imagem dos policiais federais que foram acusados de estupro, nas dependências da Polícia Federal, em detrimento do direito à intimidade e a preservação da identidade do pai da criança”(1).

Idêntica razão imperou no julgamento, pelo Tribunal Pleno do STF, de questão de ordem no Inquérito 2.424/RJ para permitir o uso em processo administrativo de dados obtidos mediante interceptação telefônica decretada para fins penais.

Com apoio nas idéias de Ingo Wolfgang Sarlet, bem lembra Luiz Guilherme Marinoni que a fundamentalidade material do direito parte da premissa de que os direitos fundamentais repercutem sobre a estrutura do Estado e da sociedade(2).

Despido do direito fundamental à efetivação jurisdicional da tutela da segurança pública, o direito material à segurança pública não se realiza; transforma-se em letra-morta, porquanto o direito só se produz processualmente.

Conforme o artigo 5.º, caput, da Constituição Federal, a todos em nosso território é garantida a inviolabilidade, entre outros, do direito à segurança. Robustecendo este dispositivo, o artigo 144 da CF/88 dispõe que a segurança pública, além de ser um dever do Estado, é direito e responsabilidade de todos, devendo ser exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio.

Harmoniza-se com o interesse público primário, ou seja, interesse da sociedade, “sintetizado em valores como justiça, segurança e bem-estar social”, distinto do outro desdobramento do interesse público, o interesse público secundário, “que é o interesse da pessoa jurídica de direito público (União, Estados e Municípios), identificando-se com o interesse da Fazenda Pública, isto é, do erário”(3).

O processo é instrumento de produção do direito. Analisada sob uma perspectiva mais condizente com a nova teoria constitucional(4), a Constituição foi elaborada para ser concretizada, efetivada, e não para ser uma mera carta de recomendações ou tábua de valores. Tem força normativa e há de ser implementada.

Para essa concretização, “o ponto de partida do intérprete há que ser sempre os princípios constitucionais, que são o conjunto de normas que espelham a ideologia da Constituição, seus postulados básicos e seus fins”(5).

Os princípios nela encartados revelam-se também direitos fundamentais, como ocorre com, além dos já citados, o devido processo legal (artigo 5.º, LIV), o juiz natural (artigo 5.º, LIII), a ampla defesa (artigo 5.º, LV), o acesso ao Judiciário (artigo 5.º, XXXV), a presunção do estado de inocência ou de não-culpabilidade (artigo 5.º, LVII) e outros tantos.

Ainda em sede do Inquérito 2.424/RJ, o Ministro Cezar Peluso suscitou nova questão de ordem, a segunda, levada a julgamento pelo Tribunal Pleno no dia 20/06/2007, ocasião em que a decisão anterior recebeu um plus permissivo.

Passou-se a admitir a prova emprestada do produto da interceptação também contra outros servidores, cujos supostos ilícitos administrativos teriam emergido da colheita dessa prova (STF, Tribunal Pleno, Inq.-QO-QO n. 2.424/RJ, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 20/6/2007, DJ 24/8/2007, p. 55).

Não se trata de interpretação de caráter absoluto sobre o uso do resultado da interceptação telefônica, mas, sim, de perceber e situar adequadamente os bens jurídicos e interesses constitucionalmente consagrados, a fim de utilizá-los na ponderação entre o direito individual à intimidade e os interesses públicos na repressão a ilícitos penais e administrativos, porque ambos interessam ao Estado (imediatamente) e à sociedade inteira (por conseqüência), conforme assentou Peluso em seu voto, na sessão de 25/04/2007.

Notas:

(1) CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo. In: DIDIER JR., Fredie (org.). Leituras complementares de processo civil. Salvador: JusPodivm, 2008, p. 168, nota 73. Seguindo essa linha, o autor cita ainda que, “não obstante o dever da autoridade policial identificar criminalmente o preso em flagrante não identificado civilmente (art. 1.º, par. ún., da Lei 10.054/2000), é um exagero garantista considerar legítima a situação de um indiciado que, preso durante a execução do crime, apresenta carteira de identidade de terceiro e, com isto, impede que se conheça seus antecedentes criminais, com a conseqüência de eximir-se da responsabilidade penal e, o que é ainda mais grave, gerar a condenação de um inocente” (op. cit., p. 168).
(2) MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 166.
(3) BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n.º 851, 1.º nov. 2005. Disponível em: HTTP://JUS2.UOL.COM.BR/ DOUTRINA/TEXTO.ASP?ID=7547. Acesso em: 9 nov. 2007. A leitura deste artigo é imprescindível ao estudo do novo constitucionalismo.
(4) “A constitucionalização do Direito importa na irradiação dos valores abrigados nos princípios e regras da Constituição por todo o ordenamento jurídico, notadamente por via da jurisdição constitucional, em seus diferentes níveis. Dela resulta a aplicabilidade direta da Constituição a diversas situações, a inconstitucionalidade das normas incompatíveis com a Carta Constitucional e, sobretudo, a interpretação das normas infraconstitucionais conforme a Constituição, circunstância que irá conformar-lhes o sentido e o alcance” (BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil, cit.).
(5) BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 141.

Danilo Andreato é professor da pós-graduação em Direito Penal e Crime Organizado da FTC/EaD, professor de Direito Penal da Faneesp/Inesul, professor de Direito Penal e Processual Penal do Curso Aprovação, mestrando em Direito (PUC/PR), especialista em Direito Criminal (UniCuritiba), titulado em Formação Especializada em Direitos Humanos pela Universidade Pablo de Olavide (Sevilha, Espanha) e assessor jurídico na Procuradoria da República no Estado do Paraná. daniloandreato@hotmail.com. www.daniloandreato.com.br.

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